domingo, 30 de agosto de 2015

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«ao príncipe da história linda que sua mãe contava, à beira da enxerga...
Agora, depois que deixara a escola, tudo mudou. O príncipe da história, que ele personificava, fora a enterrar naquele dia de começo das aulas, amortalhado na névoa que viera de longe, até à vila. E as pombas não saíram dos pombais, que eram moradias, como a do sr. Castro. E o sol não veio nesse dia, nem nos outros.
Então, Gaitinhas decidiu descer às ruas. Lá em baixo, naquele grupo de rapazes que pareciam formigas, devia estar Maquineta, seu antigo companheiro. Talharia por o dele e dos outros o seu destino.» 
Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (1942), 5.ª ed., Mem Martins, Publicações Europa-América, 1974, p. 25, ls. 1-12. 




sábado, 29 de agosto de 2015

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«era capaz de cumprir tudo quanto dizia, ao domingo, depois da missa, à porta do Valseves!

Apesar do seu estado de espírito animoso, Manuel da Bouça ensombreceu de novo ao meter pelo carreiro aberto na relva, que ligava o aglomerado da aldeia à sua casa, solitária entre os campos. As preocupações e a força de vontade que vinha despendendo davam-lhe uma expressão fatigada e melancólica.
Amélia, ao vê-lo atravessar a cancela, coxeando, perguntou, alvoroçada:
-- Que tens? Que te aconteceu?
-- Nada. Foi um espinho. Não é coisa de monta.»

Ferreira de Castro, Emigrantes (1928), 24.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1988, p. 25, ls. 1-12.  

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

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«Yes sir, yes sir...


That's my baby now!...

Uma larga hora, na vertigem de um clube, voa como um efémero segundo. Já dera meia noute. Começava a respirar-se um ambiente de nervosismo e de loucura, ao qual os mais fortes de espírito dificilmente resistiriam. Como um carro destravado em declive, César sentiu-se impelido para alegria alvar, selvática, que detém o pensamento e deixa os nervos à solta.
-- Parece que o champagne -- observou-lhe Odette, ao vê-lo tão animado -- não é tão mau como o pin-»

Mário Domingues, O Preto do Charleston, Lisboa, Guimarães & C.ª, 1930, p. 25, ls. 1-12.


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

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«no céu, não se ouve o farfalhar das poucas árvores na planície. Olímpia, de olhos fechados, parece estar longe dali e morde-lhe suavemente a polpa de uma orelha e ouve-se a sua respiração opressa, os lábios roçando-lhe a nuca, com o seu bafo morno e apetecido. de súbito, o braço que tenta enlaçar-lhe o busto, nervoso e precipitado, bate no candeeiro de petróleo que se encontra em cima da mesa. O candeeiro cai em estilhas. O estrondo dos bocados de vidro, a chama bravia da torcida no meio do chão da casa,»

Antunes da Silva, suão, Lisboa, Portugália Editora, 1960, p. 25, ls. 1-12. 


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«Havia já quem esperasse sem sobressalto a chegada do exército da Gironda. A princípio, vozes correram, anunciando que a divisão de Junot iniciara a marcha de Baiona. Espalhara-se depois que o exército se estava concentrando para uma campanha na Áustria... As colheitas principiaram. Serenamente, deitavam-se contas ao tempo das vindimas. Em paris, Napoleão mobilizava exércitos, imaginando aterrorizar Portugal. A esse tempo, em toda a terra portuguesa, secava o milho e rezavam-se as coroas»


Carlos Malheiro Dias, Paixão de Maria do Céu (1902), 3.ª ed., Lisboa, Portugal-Brasil Sociedade Editora, s.d., p. 25, ls. 1-12.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

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«Uma névoa de tristeza pairou nos olhos de Natél, porém o seu pensamento logo a conduziu para a imagem de Bostião e para as palavras que lhe ouvira um dia antes, deixando-a absorta e novamente enlevada. Sente-se feliz. O vozear de algumas crianças correndo no terreiro vem despertá-la. Alonga a vista na direcção do povoado, que o sol envolve numa doce e clara luminosidade.
Por essa hora, pela vereda aberta do capim que lentamente se vai içando à medida que a cacimba evapora ou escorre para o chão, as mulheres deviam já ir, em fila, na direcção da estrada, que se estende»

Orlando da Costa, O Signo da Ira (1961), 2.ª ed., Lisboa, Editora Arcádia, 1962, p. 25, ls. 1-12.

sábado, 22 de agosto de 2015

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Já caía a noite, ao saírem da taberna, o Lambaça conduziu o companheiro por ruas estreitas e antigas, pelas quais se espalhava um cheiro agridoce a cozedura de centeio. Saíram da vila por uma quelha pedregosa, que descia torturada por entre latadas e muros. Alguns camponeses, regressando ao trabalho, passavam por eles e saudavam sem surpresa. Ao fundo da quelha, gorgolejando por entre ervas e rebolos, corria um riacho, cuja frescura se respirava no ar. Durante muito tempo, já escuro, o Lambaça guiou»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites [1975], 2.ª ed., Lisboa, Edições Avante!, 1994, p. 25, ls. 1-12.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

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«V

À chegada dos frios, Josefa decidiu comprar-lhe fatos novos. Andaram pelas lojas a escolher as fazendas, estudavam figurinos, combinavam as cores. A costureira punha desvelos na confecção, afagava nas provas aquele corpo que cumpria as medidas ideais. Romana saltitava, espetava o dedinho, propunha alterações sem razão e sem fim. Josefa procurava dar uma opinião, mas a prova findava antes que ela tivesse conseguido esclarecer as ideias. Quando Maria Emília estreou um casaco cor de cinza debruado a veludo azul escuro, Romana olhou-a com desolação:
-- É o cabelo, vês? Essa trança que te fica mal.» 

Hélia Correia, O Número dos Vivos, Lisboa, Relógio d'Água, 1982, p. 25, ls. 1-12.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

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«4.ª feira: 2 de Julho.

-- Um momento que eu estou aqui a ver se já se consegue falar para Lisboa. Ó menina! É Sines? Queria saber um número de telefone pela morada. Não? Não se consegue? Era o que eu já esperava! Obrigado. Está tudo na mesma. Em Lisboa ainda está em greve aquela gente dos telefones. É o que se está passando por lá. Ainda não pode fazer a chamada hoje. Volte amanhã. Ou volte logo. Quem sabe? talvez logo já se consiga ligação. E a senhora? Deseja postais? Estão aqui. Faça o favor de escolher. São bonitos são.»

Olga Gonçalves, A Floresta em Bremerhaven (1975)

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Resultado de imagem para tomaz ribas«Cada assunto, cada criatura, merecia-lhe um novo trabalho. E foi a vida do seu colega Bernardes que tivera uma filha que morrera tuberculosa; foi a vida superficial da Guida e a vida difícil da D. Maria; foi a história da D. Alda, a sua vizinha do 3.º andar, a quem todos os meses cortavam a electricidade e a quem todos os meses a porteira ia descompor, exigindo o pagamento da renda da casa ou os escritos nas janelas; foram histórias de criadas de servir, de ardinas, de vendedores ambulantes, de prostitutas, de velhos que saíam de noite pedindo esmola, de mulheres a dias... tantas, tantas vidas de gente que sofre, de gente que luta na esperança de melhores dias.»

Tomaz Ribas, Cais das colunas, Lisboa, arcádia, 1959, p. 25, ls. 1-12.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

frente a frente


3. Num dialogo duro entre André -- «Está arrependido do compromisso que tomou? Ganhou medo? Ou quer mais dinheiro?» -- e Lambaça, o retrato psicológico do dúbio passador vai-se adensando:


«Um e outro devoraram a travessa de bacalhau com grão. Esquentado pela correria, André bebeu vários copos de água, e o Lambaça outros tantos de vinho. Estava já visivelmente tocado pelo álcool e os olhitos avermelhados riam provocantes cada vez que o companheiro levava à boca o copo de água. Sem tirar o chapéu, despira o casaco preto, acomodando no bolso, bem à vista de André, um enorme revólver prateado. Os suspensórios demasiado esticados arrepelavam-lhe a camisa, deixando perceber uns ombros musculados. Só no fim da refeição quebrou o silêncio, a voz já empastada pelo vinho, mas ainda mais chocarreira e arrogante.»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975)

sábado, 15 de agosto de 2015

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«Sim, aquilo fora praga de maltês!...



Há anos a esta parte, a praia, a sua praia, morria lentamente. Tudo o que os seus olhos enxergavam de um formato e qualidade, varria-se como bosta mal-cheirosa. Eram pedreiros de rocha-acima a abrir caboucos, paredes de pedra e cal a tomar formas de janelas e portas; vigamentos, rijamente martelados, cobertos de telhas vistosas. Faziam-se correntezas de moradias -- e, entre cada duas filas, ficava uma nova rua e um novo nome a decorar. Também o pessoal, que depois se regalava lá dentro, diferia bastante: tipos que não suavam»

Romeu Correia, Calamento, Lisboa, Editorial Minerva [1950], p. 25, ls. 1-12.


sexta-feira, 14 de agosto de 2015

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«torpor. Quando as últimas pessoas saíram, levantei-me também. Constatei que seria provavelmente de chegar até à porta. Constatei ainda que me apetecia sentir na cara a brisa fresca da noite. Percorrer ruas da cidade até amanhecer. A chama do meu cigarro ao vento. E cair depois exausto na cama para um sono opaco como a morte. Mas a Maria José, a sua mão leve, segurou-me pelo braço e disse: fica mais um bocadinho. Repetiu que eu estava em péssimo estado e que não podia ir para o hotel assim. Compaixão, uma das coisas a que não resisto nos tempos que correm. Perguntou porque é que eu não ficava lá em»

Paulo Castilho, Fora de Horas [1989], 11.ª edição, Lisboa, Publicações dom Quixote, 2000, p. 25, ls. 1-12. 

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

breve reflexão sobre uma passagem martiniana de Carlos Malheiro Dias

Entre a doce inconsciência de peraltas e sécias da guerra que lá vem e comezainas da criadagem (com a expressiva personagem do cocheiro Xavier (ou Mestre) Estoqueta), prefiro dar atenção a um eco de Oliveira Martins na prosa de Carlos Malheiro Dias: 

«E o nobre Ataíde, com essa familiaridade com que sempre os fidalgos portugueses se aconchegaram ao povo, agradecia aos bolieiros e eguariços, erguendo da cabeça o chapéu de bico largo.»

Esta pretensa comunhão entre nobreza e povo, passando por cima da burguesia, foi tema muito explorado por Oliveira Martins e outros no seu encalço. A verdade é que este wishful thinking, como agora se diz, prende-se, sociologicamente, com o triunfo da burguesia (argentária, sem princípio nem passado) e correspondente decadência da aristocracia, que em muitos casos se tentou consorciar com os arrivistas. Fazer disso uma base para uma teoria política que desembocaria no cesarismo, como o fez Oliveira Martins, é uma fantasia sem ponta de plausibilidade.

Carlos Malheiro Dias, Paixão de Maria do Céu (1902), cap. II

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

o percurso de Tomé


Órfão sem apelido, nascido no sertão angolano e órfão de mãe aos dois anos; acolhido como um bonequinho pela filha de um comerciante; fiel de armazém quando deixou de ter a graça do pretinho, revolta-se contra a exploração e os maus tratos; saltimbanco; emigrante nessa América racista que lhe dá a conhecer os ritmos do jazz; a bailarino no Roma Clube, descoberto pelo Veiga jornalista; amante de Odette.. 

O tema do racismo, provavelmente novidade entre nós, acaba por ser desperdiçado pelo estilo ligeiro de Mário Domingues. É pena.

(um parágrafo, cap. V)

«Estonteado pelo infernal ruído e pela luz mórbida que pairava no ambiente, o seu cérebro não raciocinava, mal tinha tempo de registar mil e uma impressões díspares, que lhe doíam como mil e uma picadas impiedosas. As notas graves, prolongadas, do saxofone despertavam-lhe na alma ecos gemebundos e doloridos. O movimento vertiginoso do bailado provocava-lhe estranhas ilusões de óptica e via então, obliquadas em sentidos opostos, as linhas perpendiculares da sala, ao mesmo tempo que a horizontalidade das mesas balanceava confusamente, como se o clube fosse um salão de transatlântico que ondas tempestuosas agitassem.»

Mário Domingues, O Preto do «Charleston» (1930)


terça-feira, 11 de agosto de 2015

ver de baixo

3. Ao segundo dia de seminário, o estranhamento e o sofrimento persistem. As impressões visuais e auditivas inscrevem-se na memória do narrador, para sempre: «[...] perto do Seminário, ressoavam as pancadas de um tanoeiro que nunca mais esqueci.» 
O espaço, os objectos, os vultos são, aos olhos daquela criança, exponencialmente ampliados em face da própria pequenez da infância; os condiscípulos, rudes e toscos, como um espelho que o reflecte: 

«Decerto porque a maioria vinha da raça da gleba. Empenados, talhados à podoa, recozidos das soalheiras através das gerações, trazíamos na face negra a nossa condenação. Havia-os baixos, cheirando a terra, com dois pulsos grossos como dois eixos de carro. Havia-os altos, ossudos, com o peito largo encovado. Uns tinham a bola grande do crânio integralmente rapada. Outros, com duras repas de cabelos a enchumaçar-lhes o pescoço, abriam o seu pasmo cavernoso e lento de bichos. De olhar assustado e ferino, de olhar morto de boi, infelizes e inocentes, eu olhava-os como irmãos do fundo do meu sofrer.»

O recolhimento, ao fim do dia, a criança desprotegida, a sós com o seu medo e a sua fragilidade, entrega-se à noite -- «Chorei quanto pude até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do outro, calados e de mãos dadas.» -- único território de liberdade, que permite a António transportar-se para a memória dos seus entes e dos seus lugares. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Gineto, grande Gineto

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (1941) - 1.3


As mulheres da Feira também se vendem: a Rosette e as colegas, as do "Restaurante das Andorinhas". A Rosete, «de olhos esquisitos como o seu nome», com «a voz mais suave que o canto dos pintassilgos nos valados» embasbacando o sanguíneo Gineto, tão «valentão, como o Tom Mix», apesar da sua pouca idade.
A Feira como libertação fugaz da desesperança quotidiana, como pórtico do sonho. No carrossel, à desfilada, 
                «Gineto fizera-se Tom Mix em pensamento e crava esporas no cavalo, a que chamou Malacara. Dentes cerrados e o lenço ondulando ao vento, cingia nos braços a pálida Rosete, arrebatada aos bandidos. O cavalo saltava muros e esteiros, sem parar. E o Malesso, o Sagui e todos os companheiros do telhal acenavam ao longe, muito ao longe...»
Gineto, o grande Gineto, que paga a volta ao Gaitinhas e rouba uma gaita de beiços para dar ao amigo sem dinheiro. Todos roubam: é o Malesso que rouba, e o Gineto também; são os feirantes que são roubados, pobres como o são os miúdos, num círculo vicioso de carência e chumbo.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

dor n'alma

2. Gervásio despachado para Lisboa, é agora Ricardo de Loureiro quem concita a atenção de Lúcio. Neste capítulo de construção rudimentar, o narrador-protagonista é como que o anotador das angústias e dos estados de alma de Ricardo (também ele alter ego do autor, nas encruzilhadas íntimas e na amargura das disformidades físicas). Continua a vincar-se a desconformidade dos protagonistas, por pose ou inclinação profunda, com o que está convencionado e é aceitável em sociedade. Lisboa, de resto, é a primeira a ser riscada do mapa, mesquinha e provinciana para espíritos requintados diante da luminosa Paris -- «É o único ópio louro para a minha dor -- Paris!» --, quando, em crise, não sentem a nostalgia da simplicidade nunca vivida.
Quanto a Ricardo, aprisionado dentro de si em confissão a Lúcio, um fóbico que sente fisicamente a alma e dores no espírito, acaba por revelar(-se) artificiosamente (tudo aqui é artificial, excepto o sofrimento) na sua bissexualidade. 
(parágrafo)
«--É isto só: --disse -- não posso ser amigo de ninguém... Não proteste... Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura trás sempre consigo um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os meus desejos, posso sentir realmente aquilo que os provocou. A verdade, por consequência, é que as minhas próprias ternuras nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.»



Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio (1914)