quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Aquela mulher era ali, no Estoril elegante, a máxima fascinação...

Aquela mulher era ali, no Estoril elegante, a máxima fascinação, a serpente de olhos verdes de todos os veraneantes masculinos.

Início de O Drama da Sombra, de Ferreira de Castro, Lisboa, Diário de Notícias, 1926.

Poucos haverá para quem o nome Viriato não suscite longínquas ressonâncias épicas...

Poucos haverá para quem o nome Viriato não suscite longínquas ressonâncias épicas ou evocações mais ou menos patrióticas. Para estes, ele é o herói que Camões imortalizou nos seus versos, com o qual as gentes portuguesas «na inimiga guerra romana tanto se afamaram», ou, citando as palavras patrióticas de Pessoa, «a fria luz que precede a madrugada... na antemanhã, confuso nada». Na cultura portuguesa, Viriato sempre representou o papel do herói mítico, antecedendo o Fundador, lutando valorosamente contra a ocupação romana e defendendo do poderoso invasor desta região que mais tarde daria lugar a uma parte de Portugal.

Início de Viriato, de Paulo Farmhouse Alberto, Mem Martins, Editorial Inquérito, 1996.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico

Calcorrear o país, conhecê-lo como as palmas das mãos, saber o sabor da terra e perceber que somos como somos porque nos conhece desde a Pré-História, de antes dos lusitanos, das estradas que percorremos na Antiguidade: o Norte atlântico e celta do megalitismo; o Sul mediterrânico e levantino do comércio com fenícios e gregos.
Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, de Orlando Ribeiro -- o maior geógrafo português do século XX --, para além da caracterização das três grandes áreas em que ele dividiu o país, Noroeste atlântico, Norte interior e Sul, com a caracterização dos solos, dos climas, das culturas, das habitações -- e por muito que os anos por ele tenham passado (1.ª edição, 1945), apesar das várias reedições --, para além, dizia, da enorme importância de que se reveste, está admiravelmente escrito, o que faz do livro não apenas uma obra científica, como literária e, portanto, um marco cultural português, cuja leitura continua a ser altamente recomendável. 

No fim de Agosto de 1939, em Nanga Parbat, haviam acabado os reconhecimentos da terceira expedição alemã, de que eu fazia parte.

No fim de Agosto de 1939, em Nanga Parbat, haviam acabado os reconhecimentos da terceira expedição alemã, de que eu fazia parte. Descobrimos uma nova via para o escalamento e esperávamos, em Karachi, a chegada dum cargueiro que nos conduzisse à Europa. O barco estava atrasado no seu horário e sombras negras pressagiavam, em cada dia que passava, a eclosão da segunda guerra mundial. Os meus camaradas Chicken e Lobenhoffer decidiram escapulir-se às malhas que a polícia inglesa nos andava a preparar. Só Aufschnaiter, chefe da expedição, combatente da guerra de 1914, se recusava acreditar na iminência dum novo conflito, obstinando-se a ficar em Karachi.

Início de Sete anos de Aventuras no Tibete (1952), Heinrich Harrer, trad. Alberto Calderon Dinis, 2.ª ed. Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1959.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A época é de tragédia.

A época é de tragédia. O que domina é o oiro. Só existe um deus -- O Gozo. Inteiro descalabro nas consciências. Eu que quero? tu que queres? Gozar. Visto que depois da morte só o nada existe e a terra tudo traga -- um buraco e alguns punhados de desprezível cisco -- o mundo divide-se logicamente em dois largos campos: nos que, cépticos, sem preconceitos, frios como lâminas, secos como pedras, conquistam, mandam e dominam, com o código por consciência, e a quem tudo na terra é permitido -- calcar, mentir, triunfar enfim -- contanto que se fique dentro dos limites duma coisa honrosa a que por convenção se chama a honra, isto é fora da cadeia; e nos pobres, explorados e simples, ainda ignorantes, crendo numa vida eterna, que lhes pague a dor de virem ao mundo só para chorar, fartos de miséria e gritos, fartos de fome e desilusão, caminhando como um rebanho, gasto e suado, por este vale de lágrimas e de quem os outros se riem às escâncaras.

Início de O Padre (1901), de Raul Brandão, prefácio de José Manuel de Vasconcelos, Lisboa, Vega, s.d.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

V

foto: Félix Nadar
Fogachos. Sugestões. -- Quando um homem cai à cama, quase todos os seus amigos têm um secreto desejo de vê-lo morrer; uns para verificarem que ele tinha uma saúde inferior à deles; os outros, na esperança desinteressada de estudar uma agonia.
O desenho arabesco é o mais espiritualista dos desenhos.

Charles Baudelaire, O Meu Coração a Nu precedido de Fogachos,  trad.João Costa, Lisboa, Guimarães Editores, 1988.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Da soma de documentos que, sobre a vida portuguesa no século XIII, chegou até nós...

Da soma de documentos que, sobre a vida portuguesa no século XIII, chegou até nós salientam-se testemunhos bastantes para podermos garantir que já então existia uma corrente de comércio marítimo ligando Portugal aos entrepostos comerciais do Norte da Europa e do Mediterrâneo e que a primeira dessas ligações estava, pelo menos em parte, nas mãos de mercadores portugueses.

início de Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, de Luís de Albuquerque, 3.ª ed., Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d.

sobre O que Diz Molero


Grande literatura é isto:  domínio da palavra a benefício da narrativa, espessa, sumarenta, cheia de coisas a dizer e de indícios doutras que ficam por enunciar. Estórias e estorietas, há muito quem conte, alguns até reputados de bons escritores; mas O que Diz Molero (1977) é a história, narrada de forma múltipla, dum escritor de obra escassa, sete títulos, três dos quais sob o pseudónimo Dennis McShade.
Li-o por volta de 1983, e voltei agora a ele, no Clube de Leitura do Museu Ferreira de Castro. Por esse então, final da adolescência, apesar de muitas referências me escaparem -- que não as da BD (Dinis Machado terá sido o único escritor português a ter aposto numa obra literária os nomes de Zig e Puce...) ou as dos Westerns de John Ford; é um livro cheio de cinema (até na prosa) e quadradinhos --, havia também uma memória que me era familiar: o imaginário lisboeta das décadas de 1930-1940, que me foi transmitido pelo meu pai, da mesma geração do autor: as figuras populares, suas alcunhas e seus maneirismos; a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial, o modo como eram ansiosamente seguidas e as próprias implicações sociais e políticas desses dois cataclismos entre nós; o cinema de Hollywood e os filmes em 31 partes do Flash Gordon; os comics americanos, Dick Tracy e Mandrake, os combates de boxe... Referências pulp e eruditas, de Camilo Pessanha a Jorge Luis Borges, fluindo naturalmente, porque reflexo da vida e da vivência.  Não sei se algum vez um livro me deu tanto prazer a reler.
A verdade é que em que O que Diz Molero a prosa é rigorosamente vigiada e calibrada, tão fundamental quanto o inventário da infância se presta  a todas as derrapagens do sentimentalismo : não há lamechice, mas ternura, um humor terno e nunca boçal.
Nota aos jovens leitores: tem até vampiros... -- não daqueles de ecrã, que ocupam os escaparates dos híperes, mas o tenebroso "Vampiro Humano", tenebroso para o rapaz(o protagonista do romance, ou um dos protagonistas) e para os seus amigos de correrias e partida pelo Bairro.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

EPÍLOGO EN CASTILLA

Quiero fechar idealmente estas páginas españolas en un viejo pueblo castellano; uno de esos pueblos que he intentado retratar en mis libros. El campo se extiende ante mi vista; se halla en la primavera cubierto con el tapiz verde;  de los sembrados, roto acá y allá por las hazas hoscas, negras, de los barbechos y eriazos; aparece en otoño desnudo, pelado, de un uniforme color grisáceo. No se erguen árboles en la llanura; no corroen arroyos ni manan hontanares. El pueblo reposa en un profundo sueño...
Ningún lugar mejor que estos parajes para meditar sobre nuestro pasado y nuestro presente. Cauda de la decadencia de España han sido las guerras, la aversión al trabajo, el abandono de la tierra, la falta de curiosidad intelectual; convienen en ello -- como habrá visto el lector -- Saavedra Fajardo, Gracián, Cadalso, Larra. No hay más aplanadora y abrumadora calamidad para un pueblo que la falta de curiosidad por cosas del espíritu; se originan de ahí todos los males. Se originan de ahí la ausencia de examen, de comparación, de apreciación y de repulsión, de entusiasmo y de hostilidad; entusiamo y hostilidad que remueven la inercia de los de abajo e impiden la corrupción de los de arriba.
Esos españoles eminentes que hemos hecho desfilar por estas páginas, movidos estaban de una insaciable curiosidad intelectual; viajaron por Francia, Italia, Alemanía, Inglaterra. Los que no salieron de casa -- como Gracián --, sentíanse ansiosos por toda novedad filosófica o primor literario. La falta de curiosidad intelectual es la nota dominante en la España presente. Cómo haremos para que interese un libro, un quadro, un paisage, una doctrina estética, uma manifestación nueva del pensamiento? Reposa el cerebro español como este campo seco y esto pueblo grisáceo. No saldrá España de su marasmo secular mientras no haya millares y millares de hombres ávidos de conocer y comprender.

Azorín, Castilla [1912] [apêndices], edição de Inman Fox, Madrid, Espasa Calpe, 14.ª ed., 2004.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

12x25

[con]cordo que isso possa ser ridículo, «mas que me deixem em paz».
     Polina Aleksandróvna insistiu em que eu partilhasse com ela os ganhos do dia em partes iguais, e deu-me oitenta fredericos de ouro, propondo-me que continuasse a jogar nessa condição. Recusei completa e definitivamente a metade e disse-lhe que não podia jogar para outros, não porque não quisesse, mas porque de certeza perderia.
     -- Pois também eu, por mais tolo que isso possa ser, já quase só tenho esperança na roleta -- disse ela, pensativa. -- E por isso você deve sem falta continuar a jogar a meias comigo, e, é claro, vai continuar. -- E afastou-se de mim,

Fiódor Dostoievski, O Jogador -- Memórias de um Jovem, trad. António Pescada, Lisboa, Biblioteca de Editores Independentes, 2007, p. 25, ls. 1-12. 

domingo, 17 de fevereiro de 2013

curso?

     Afinal, digam-me os senhores com suas luzes e sua experiência, onde está a verdade, a completa verdade? Qual a moral a extrair desta história por vezes salafrária e chula? Está a verdade naquilo que sucede todos os dias, nos quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imdensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição? Como se elevou o homem em sua caminhada pelo mundo: através do dia a dia de misérias e futricas, ou pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações? Quem levou Vasco da Gama e Colombo aos convés das caravelas? Quem dirige as mãos dos sábios a mover as alavancas na partida dos sputniks, criando novas estrelas e uma lua nova no céu desse subúrbio do universo? Onde está a verdade, respondam-me por favor: na pequena realidade de cada um ou no imenso sonho humano? Quem a conduz pelo mundo afora, iluminando o caminho do homem? O Meretíssimo Juiz ou o paupérrimo poeta? Chico Pacheco, com sua integridade, ou o comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso?

Final de Os Velhos Marinheiros (1961), de Jorge Amado, Lisboa, publicações Europa-América, 1962.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

TRÊS ESCUDOS

A minha cela levou hoje uma barrela mestra!
Durante três horas andaram dois presos encarrapitados num escadote, e a palmilhar a lagariça do chão, descalços, encharcados até aos ossos, numa esfrega desenfreada de escova, pano, sabão e potassa, que deixou tudo num brinquinho, do tecto à porta!
Como não eram obrigados a tanto esforço, disse-lhes que ia entregar 3 escudos à Secretaria, onde eles poderiam recebê-los.
-- Nada, não senhor! responderam ambos. Não iremos!
Insisti. Mostrei-lhes que a fartura não era grande, que nada os obrigava ao que tinham feito, que estavam ambos exaustos de cansaço.
-- Muito agradecido, atalharam eles mantendo a sua recusa. Isto que nós fizemos não é nada...
-- Não nos deu trabalho algum, acrescentou o mais velho, arfando de fadiga.
Ainda tentei convencê-los. Não houve meio. Mantiveram-se intransigentes.
-- E além disso, concluiu um deles com ar embaraçado, nem era bonito a gente aceitar...
Intrigado, perguntei-lhe porquê.
-- Porque a gente sabe muito bem que o senhor... o senhor também vive com dificuldades!
E sem quererem ouvir mais, deitaram o escadote aos ombros e abalaram pela porta fora, a escorrer como uns pintos!
Um deles, por alcunha o Marreco, está condenado por ladrão.
O outro, por alcunha o Bilau, está condenado por incendiário. (*)

(*) -- Este Bilau era um recluso com bom comportamento. Condenado por crime de fogo posto num palheiro, jurava estar inocente, e o seu co-réu, autor do crime, confirmou sempre a verdade desse juramento. Bilau tentou a revisão do processo, mas faltaram-lhe os meios para isso. Morreu em 1929.
O outro ainda se encontra preso e é igualmente bem comportado.

António Bandeira, os Grandes Armazéns da Desventura, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1931.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

TEMPOS

Isso é que era alegria:
Ter avós e os pais vivos
E a pensá-los eternos
No nosso amor de criança,
Isso é que era alegria!

Isso era a Eternidade:
Agora, a noite e o dia,
O Tempo! Ah, o Tempo
Que não adianta a morte
Nem o atrasa a idade.

Afonso Duarte, Obra Poética, Lisboa, Plátano Editora, 1974. 



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

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dos miolos, como os ossos dos membros, pela carne e o tutano, constituem as partes mais suculentas da caça.
     É perfeitamente verosímil que fossem oferendas a qualquer poder sobrenatural. Não se trataria, decerto, de um Ser Supremo, mas, mais provavelmente, de espíritos de caça. O fim das oferendas seria agradecer o êxito da caçada e assegurar, para o futuro, a protecção daqueles espíritos. Nada se sabe de positivo acerca da significação deste importante depósito de ossos, mas julga-se que constitui a mais antiga prova, até hoje conhecida, de práticas dirigidas a forças sobrenaturais.

4. O CULTO DOS MORTOS

     Os esqueletos humanos que foram encontrados em cavidades abertas artificialmente ou rodeados e cobertos de pedras ou de fragmentos de

Maria Lamas, Mitologia Geral -- o Mundo dos Deuses e dos Heróis, vol. I (1959), 3.ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 25, ls. 1-12.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

somos bons homens.

     somos bons homens. não digo que sejamos assim uns tolos, sem a robustez necessária, uma certa resistência para as dificuldades, nada disso, somos genuinamente bons homens e ainda conservamos uma ingénua vontade de como tal sermos vistos, honestos e trabalhadores. um povo assim, está a perceber. pousou a caneta. queria tornar inequívoca a ideia e precisava de se assegurar da minha atenção.

Início de A Máquina de Fazer Espanhóis, de valter hugo mãe, Lisboa, Alfaguara, 2010.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Quando Gregor Samsa despertou,

Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de insecto.

Início de Metamorfose (1915), de Franz Kafka, trad. de Breno Silveira, Lisboa, Livros do Brasil, s.d.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

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pobreza, da estupidez e da opressão, está o Laboratório da Vida. Aqui se fazem novas combinações químicas que explodem e fedem. Alguma coisa -- existe pelo menos uma hipótese -- poderá nascer. E essa simples hipótese dá ao que está a acontecer na Rússia, mais importância do que o que está a acontecer (digamos) nos Estados Unidos da América.
     Penso que é parcialmente razoável que se tenha medo da Rússia, como acontece com os cavalheiros que escrevem para o Times. Mas se a Rússia se tornar uma potência no exterior, não será pelo dinheiro do Sr. Zinovieff. A Rússia nunca terá grande importância para

John Maynard Keynes, A Rússia de Relance (1925), Leonel Pedroso Gonçalves, Lisboa, Escher, s.d., p. 25, ls. 1-12.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

12x25

Eis senão quando o Guerreiro, o Pinto basto, o Casquilho e o Maia, meus velhos camaradas, resolvem no café, na noite de quinta-feira, fazer um assalto a Lisboa, Alta. Com a nossa farda de passeio, como bons apologistas do pacifismo armado. Coisa singular: por mais que eu quisesse afastar, por absurda, a ideia de ir de um teatro a outro à procura de Juja, esquecido dos amigos e de tudo o mais, não pude consegui-lo. Mal chegámos, porém, expus o meu intento no Portugal; fui gozado, provoquei a tosse e o Guerreiro, à saída, para demover-me, teve de recorrer ao insulto. E eu dei-lhe razão. Era realmente estúpido. Acompanhei-os. Andámos naquele

José Marmelo e Silva, Depoimento [1939], Lisboa, Edição de Fomento de Publicações, s.d., p. 25, ls. 1-12.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A CONSEQUÊNCIA DOS SEMÁFOROS

Odeio os semáforos. Em primeiro lugar porque estão sempre vermelhos quando tenho pressa e verdes quando não tenho nenhuma, sem falar do amarelo que provoca em mim uma indecisão horrível: travo ou acelero? travo ou acelero? travo ou acelero? acelero, depois travo, volto a acelerar e ao travar de novo já me entrou uma furgoneta pela porta, já se juntou uma data de gente na esperança de sangue, já um tipo de chave-inglesa na mão saiu da furgoneta a chamar-me seu camelo, já a companhia de seguros me propõe calorosamente que a troque por uma rival qualquer, já não tenho carro por uma semana, já me ponho na borda do passeio a fazer sinais de náufrago ao táxis, já pago um dinheirão por cada viagem e ainda por cima tenho de aturar o pirilampo mágico e a Nossa Senhora de alumínio do tablier, o esqueleto de plástico pendurado do retrovisor, o autocolante da menina de cabelos compridos e chapéu ao lado do aviso «Não fume que sou asmático», proximidade que me leva a supor que os problemas respiratórios se acentuaram devido a alguma perfídia secreta da menina que não consigo perceber qual seja.
A segunda e principal razão que me leva a odiar os semáforos é porque de cada vez que paro me surgem no vidro da janela criatura inverosímeis: vendedores de jornais, vendedores de pensos rápidos, as senhoras virtuosas com uma caixa de metal ao peito que nos colam autoritariamente sobre o coração o caranguejo do Cancro, os matulões da liga dos Cegos João de Deus nas vizinhanças de um altifalante sobre uma camionete com um espadalhão novo em folha em cima, o sujeito digno a quem roubaram a carteira e que precisa de dinheiro para o comboio do Porto, o tuberculoso com o seu atestado comprovativo, toda a casta de aleijões
(microcefálicos, macrocefálicos,coxos, marrecos, estrábicos divergentes e convergentes, bócios, braços mirrados, mãos com seis dedos, mãos sem dedo nenhum, mongolóides, dirigentes de partidos políticos, etc.)
sem contar o grupo de Bombeiros Voluntários que necessita de uma ambulância, os finalistas de Coimbra, de capa e batina, que decidiram fazer uma uma viagem de fim de curso à Birmânia e a rapaziada da heroína que não conseguiu roubar nenhum leitor de cassetes nesse dia.
Resultado: no primeiro semáforo já não tenho trocos. No segundo não tenho casaco. No terceiro não tenho sapatos. No quinto estou nu. No sexto dei o Volkswagen. No sétimo aguardo que a luz passe a encarnado para assaltar por meu turno, de mistura com uma missão de bombeiros, de estudantes, de drogados, e de microcefálicos, o primeiro automóvel que aparece. Em média mudo cinco vezes de vestimenta e de carro até chegar ao meu destino, e quando chego, ao volante de um camião TIR, a dançar numas calças enormes, os meus amigos queixa-se de eu não ser pontual.

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

a verdade é que eu amo inquéritos...

Graça Morais, A Caminhada do Medo (2011)
Precedido da magnífica obra de Graça Morais -- talvez a pintora portuguesa contemporânea que mais me diz --, o JL  de ontem traz um inquérito a 15 escritores, a propósito do papel do escritor no quadro actual de crise e confusão.
Todas as respostas são interessantes, nem todas coincidentes, como é desejável e seria de esperar. Eis alguns fragmentos:

"[...] creio que nunca houve mudança sem uma poética da mudança." Manuel Alegre;
"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas a canalha é a mesma." Paulo Moreiras;
"O escritor livre tem imunidade lógica: contraria e contradiz." Patrícia Portela;
"Escrever sobre "isto"? Só se for através de uma escrita a quente, marcada pelo ódio. A literatura serve-se nua e fria." João de Melo;
"[...] as grandes obras acabam sempre por nos fazer perguntas importantes e obrigam-nos a reflectir sobre elas. Não consigo imaginar um intervenção cívica de maior importância." Nuno Camarneiro;
"Para mim, vida e arte não são opostas, nadam no mesmo oceano. E a literatura ou agarra o seu tempo ou é nada-morta. // [...] os livros dignos desse nome são sempre uma pergunta ao real." Rui Zink;
"[...] o primeiro dever do escritor é escrever bem, entendendo-se este «bem», não enquanto «bem-escrevência», mas como mestria dos recursos da imaginação, originalidade, capacidade de combinação e destreza de linguagem, de acordo com o talento [...] de cada um. No fundo, os velhos «engenho e arte» de Horácio." Mário de Carvalho.

vento.

Há coisas, dentro das histórias, que nunca chegam a ser descobertas e decifradas e que passam de uns séculos para os outros no galope dos cavaleiros do vento.

Final de O Cavaleiro do Vento, de José Jorge Letria, Porto, Edinter, 1991.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Hosi Mbueti decidiu voltar a Angola uma certa manhã, estava ainda deitado.

Hosi Mbueti decidiu voltar a Angola uma certa manhã, estava ainda deitado. Havia dez anos que estava refugiado na Zâmbia, pois fugira de Angola durante a guerra civil de 1975. Reuniu toda a sua energia e saltou da cama de solteiro, fazendo gemer as molas. Tinha alugado aquele pequeno quarto à Sra. Banda. Era tão pequeno que os poucos pertences -- três jarros, uma bacia, um fogareiro, uma caixa com algumas chávenas, três pares de calças, e duas camisas -- mal pareciam caber ali. Espreguiçou-se, gemendo alto, pegou na bacia e saiu a buscar água para se lavar. Eram dez da manhã e o sol ofuscava. 

Início de Patriotas, de Sousa Jamba (1990), trad. Wanda Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Cotovia, 1991.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

«Teve uma infância estranha», disse Austin.

«Teve uma infância estranha», disse Austin. «Em última análise, todas as infâncias o são», disse Mister DeLuxe. «Molero diz», disse Austin, «que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, actor e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que o transportava e, muitas vezes, o projectasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, asa tenra batendo à chuva.»

Início de O que Diz Molero, de Dinis Machado (1977), 7.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, 1978.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Em Novembro de 1870, após ter ouvido a notícia da queda da praça forte francesa de Metz...

Em Novembro de 1870, após ter ouvido a notícia da queda da praça forte francesa de Metz em poder do exército prussiano, o venerando filósofo e historiador inglês Thomas Carlyle, admirador da cultura germânica ao longo da sua vida inteira, escreveu para o Times: «Que a nobre, perseverante, sagaz, devota e sólida Alemanha se unisse finalmente numa só nação, tornando-se a Rainha do Continente, em lugar de uma França soberba, presunçosa, gesticuladora, quezilenta e hipersusceptível, parece-se ser o facto público mais promissor que tenha ocorrido no meu tempo.» Mas nem toda a gente participava do seu optimismo.

Início do esplêndido estudo de James Joll, A Europa Desde 1870, trad, Cardigos dos Reis, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982.

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Nora. -- Como? Ah! sim, compreendo. Pensas que Torwald talvez te possa ajudar.
Senhora Linde. -- Sim, pensei nisso.
Nora. -- E vai fazê-lo, Cristina. Deixa-o por minha conta; falarei do assunto tão delicadamente, tão delicadamente que ele há-de ficar na disposição de o fazer. Oh, Cristina, gostava tanto de te ajudar!
Senhora Linde. -- É muito amável preocupares-te tanto comigo, Nora, tu, que conheces tão pouco os problemas e cansaços da vida.
Nora. -- Eu?... Julgas que não os conheço? 
Senhora Linde. (Sorrindo.) -- Ora, pequenos trabalhos

Henrik Ibsen, Uma Casa de Boneca, trad. anónima, Alfragide, Ediclube, s.d., p. 25, ls. 1-12.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

12x25

     Sentiu-se inseguro, como se o sufocassem. Alguém poderia agredi-lo de repente, ocorreu-lhe. Uma, entre todas aquelas mãos, poderia ser assassina.
     Gritou, mais alto do que as vozes, abriu caminho pelo meio da multidão, empurrando e tropeçando, e alcançou, com dificuldade, o autocarro. Sentou-se no banco, com a camisa molhada de suor.
     Magotes de crianças esmagavam-se contra as janelas, do lado de fora, estendendo as mãos. Por vezes um dos turistas abria a janela e atirava não importa o quê -- esferográficas, láois, T-shirts, lenços, pacotes de bolachas ou um chapéu de pano, sobre os quais as

Teolinda Gersão, Histórias de Ver e Andar, 3.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005, p. 25, ls.1-12.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

12x25

serras que ficam para além do território de Machuculumbe, a noroeste?
     -- Não, nunca ouvi.
     -- Pois, meu rapaz, aí é que Salomão verdadeiramente tinha as suas minas, as suas minas de diamantes!
     -- Como se sabe?
     -- Como se sabe!? Tem graça! Sabe-se perfeitamente. O que é Suliman senão uma corrupção de Salomão? O nome das serras, realmente, sempre foi serras de Salomão. Além disso, uma feiticeira do distrito de Manica, uma velha de mais de cem anos, contou-me tudo... Isto é, contou-me que para lá das serras vive um povo que é das raças dos zulus, e fala um dialecto

H. Rider Haggard, As Minas de Salomão (1885), trad. Eça de Queirós, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 25, ls. 1-12.