sexta-feira, 31 de julho de 2015

O JANTAR DO BISPO

1. Uma obra-prima de Sophia de Mello Breyner Andresen, abre os Contos Exemplares (1962).

início: «A casa era grande, branca e antiga.»

Os primeiros períodos caracterizam a casa a sua situação e, indirectamente, a condição social, abastada, dos seus proprietários, contrastando com as «pequenas casas dos pobres», nas cercanias.

Pelo meio, uma poética verdadeiramente telúrica, geológica, que, pela orografia, indica situar-se a acção no Norte do país:

«Nas vertentes cavadas em socalcos crescia a vinha. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia. [...]»

28-VII-2015 (continua)

2. O nó deste conto é um padre, pároco de Varzim, a quem não é alheia a sorte dos paroquianos desfavorecidos, e nessa perspectiva desempenha o seu múnus sacerdotal. O que desagrada acerbamente ao "Dono da Casa", cabeça senhorial e herdeiro de várias gerações de donos da terra, servidos por essa gleba que está no centro da preocupações do vigário. A designação deste é uma evidente homenagem de Sophia ao Padre Abel Varzim, homem da Igreja que vindo do círculo do Estado Novo, dele se afastou, com os consequentes agravos e perseguições que viria a sofrer.
Este pôr-se do lado dos mais pobres é sentido como ameaça pelo Dono da Casa -- ameaça ao statu quo, à própria autoridade. Num diálogo discordante entre ambos, o padre replica ao senhor de forma exemplar:
     «[...] O problema que estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prético.
     Da nossa própria fome -- respondeu o Padre de Varzim -- podemos dizer que é um problema materia e prético. A fome dos outros é um problema moral.»
     Como não encará-lo como ameaça, como «semente de guerra»? O Bispo é, pois, covidado a jantar pelo Dono da Casa.

31-VII-2015 (continua)

Sophia de Mello Breyner Andresen, «O jantar do bispo», Contos Exemplares [1962], 3.ª ed., Lisboa, Portugália, 1970, pp. 5-78.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

cenas batidas

1.3. Um tom de tragédia, muito neo-realista e muito alentejano. Num registo quase cómico, Agapito Mourato, comerciante e agricultor, discute com Crispim Barradas, seareiro, as vantagens das debulhadoras que tem para venda, ao que o segundo contrapõe com os custos da eliminação de braços no trabalho agrícola que ela representa. O que será pretexto para a evocação de situações de miséria, como a daquela mãe que se atira ao poço com quase todos os filhos, por não ter com que sustentá-los.
A cena é forte e bem descrita, e é verdade que em 1960 a fome e a miséria grassavam ainda por esse Alentejo. No entanto, quer a pobreza extrema, com o seu cortejo de desgraças, quer os problemas levantados pela evolução técnica já haviam sido tratados há muito no romance português, pelo que há aqui alguma mastigação que -- podendo, embora, dar-lhe mais consistência -- não me parece, por enquanto, acrescente muito à economia da narrativa.

(um parágrafo)
«Crispim Barradas, frente ao homem de Moura, sente que o não deve poupar. Aquilo não pode ficar assim. A miséria é muita, os cuidados dobrados. Mas as maganas das palavras, que é delas? Puxava pela cabeça, matuta que matuta, e nada escorria de dentro. As máquinas são precisas, mas numa terra abandonado como a dele, como a de todos os alentejanos, enchiam as algibeiras dos  ricos e tiravam o pão aos homens e a fome alastrava como as margaças e o cizirão, ervas ruins dos campos.»

Antunes da Silva, Suão (1963)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

a caminho do exílio

2. Cidade, vila, aldeia, comboio, camioneta, intervalos por tabernas, André e Lambaça continuam o seu percurso de desconfiança e incomunicabilidade a caminho da fronteira. Um posto da guarda, conhecido do segundo e onde se costuma pedir documentos aos viajantes, implica manobra arrojada de temeridade a André, instruído por Lambaça: passar-lhes rente, a pé, como quem nada tem a temer, retomando a carreira pastelona um par de quilómetros adiante. A desconfiança do jovem militante diante duma possível armadilha aguça-se, mas o homem é um passador experiente...

(um parágrafo):

«Ali tomaram a camioneta, e esta seguiu, ronceira e aos solavancos por uma estrada poeirenta e esburacada, parando aqui e acolá em aldeias pacatas e tristonhas, onde subiam e desciam camponeses de poucas falas. André, que nascera e sempre vivera em Lisboa, olhava curioso a paisagem e a gente, apreciava as moças, ajudava a baixar cestas, e, ao fitar um e outro, lia-se-lhe nos olhos honestos a vontade mal refreada de falar e de conviver. A seu lado, direito e rígido, o Lambaça fumava cigarro atrás de cigarro, sem nada dizer.»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites (1975).

sexta-feira, 24 de julho de 2015

da captação do silêncio

É extraordinária a forma como Ferreira de Castro dá a sensação de quietude silenciosa nesta cena inicial de Emigrantes, durante preguiçar de Manuel da Bouça num fim de tarde pastoral e primaveril:

«À esquerda, para lá ainda da falda do outeiro, esbranquiçava, por entre a ramagem estática, o casario da aldeia. Desse lado, certamente de debicar os brincos vermelhos das cerejeiras, um gaio vinha, de quando em quando, esconder no pinhal o cromatismo da sua plumagem. "Chuá! Chua!" E era o único grito que quebrava o silêncio, também volátil, das velhas árvores em êxtase.»

Ferreira de Castro, Emigrantes (1928)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

livros que me apetecem

João de Barros e o Diário de Lisboa, edição de António de Barros (Casino da Figueira da Foz)
O Olhar e a Alma, Cristina Carvalho (Planeta)
Tungsténio, Marcello Quintanilha (Polvo)


quarta-feira, 22 de julho de 2015

a grande prosa de Carlos Malheiro Dias

(Paixão de Maria do Céu (1902) -- 1.1.)

O tempo é de pré-invasão das tropas napoleónicas. Os gabinetes fervilham e enrugam-se, mas o Verão persiste, as vindimas aproximam-se -- o mesmo com a festa dos vinte anos da heroína. As ralações podem esperar, ou, mais popularmente: enquanto o pau vai e vem, folgam as costas -- isto mesmo escreve CMD, em grande estilo e bom asserto de psicologia colectiva:

     «Entretanto, Agosto acabava, abundante e fecundo, farto de messes e de vinho. À medida que se aproximava a guerra, ia decrescendo o pânico ateado na província pela nova da invasão. Só o inesperado é terrível. Por isso o inferno não basta para conter as almas na virtude.»

Humor ("mesuras e curveteios"):
     «Por uma tarde, ao voltar das herdades do Adro, Sepúlveda topara de longe, na estrada, com um cavaleiro às mesuras e curveteios, que logo descobriu ser o morgadinho de Barbosa.»

O velho militar Sepúlveda, como que alienado, é dos poucos que se preparam, dentro de si, para o que aí vem:
     «A sua mania soldadesca exacerbou-se subitamente. Até altas horas ficava debruçado sobre os mapas, gisando marchas vitoriosas desde Cidade Rodrigo até Abrantes, ou afundando imaginários exércitos de escantilhão, em gargantas e desfiladeiros de serras agrestes.»


terça-feira, 21 de julho de 2015

«Críticos e autores, cumprindo a sua missão ou seguindo o seu destino, estão feitos para para se entenderem no terreno comum da realidade objectiva.»

Início de «Críticos e autores. Simples reflexões» (1952)
Manuel Antunes, Legómena, Lisboa, IN-CM, 1987.

um parágrafo:

«Sim. É tão difícil ser humilde! É tão difícil ser lúcido sobre o seu próprio caso pessoal! Mas é para esta humildade e lucidez fundamentais que ousarei apelar. Ao autor, sequer para que não nos dê um espectáculo de deselegância, ou não vá arrastando ao longo dos seus dias a amargura imensa de se julgar incompreendido, diria: -- Homem, conhece-te a ti mesmo; conhece a tua condição de homem sujeito ao erro e à imperfeição. Conhece que, por mais alto que suba o teu génio -- se o tens ou tiveste -- e talvez por isso mesmo, não estás livre de encontrar no teu voo fundos poços de ar.»

no Roma Clube

Mário Domingues, visto por
seu filho, António Domingues
Capítulo III, breve, ficamos a saber que a mãe de César, D. Leonor, é respeitabilíssima viúva de um juiz, de hábitos austeros e moral condizente. E no seguinte, uma panorama da fauna do Roma Clube: grupo de desabafos e má-língua, com o «delicado poeta» Acácio Gentil, acompanhado pelo indefectível Cândido Gomes, à conversa com Laura e Rosette -- todos homossexuais; o círculo boémio do romancista Carlos Valongo, o desenhista, pintor e decorador Mariano Lopes e o também pintor, estrangeirado, Armando Cunha, todos parecendo personagens à clef. No meio, o visionário Pedro Fernandes, sentindo o seu cabaret como desígnio e missão civilizadora:
     «Era um apóstolo da sua ideia e dela fazia uma propaganda forte e dispendiosa nas colunas dos jornais. O seu corpo franzino era um poço inesgotável de energias lentamente consumidas naquela obra gigantesca, que considerava patriótica  e que, no dizer de Mariano, realizada no estrangeiro, em França, por exemplo granjear-lhe-ia pelo menos a roseta da Legião de Honra. Adorava o seu "cabaret" com fervoroso misticismo. Trocaria todos os prazeres, até o das mulheres, malcriadas e ordinárias que eram o seu fraco, por ver a sua obra completa. Tinha uma vaidade enorme no seu clube, a cuja prosperidade, nos momentos de entusiasmo arrebatador, ligava tão intimamente a sorte da nação que, por vezes, no seu cérebro, o dancing  e o país se confundiam duma maneira absoluta.»

Mário Domingues, O Preto do "Charleston" (1930), cap. IV.
(imagem)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

como farrapo abandonado ao vendaval

Um night club lisboeta, lugar de música & evasão, bailarinos, espanholas ("Carmencita, Paca e Lola...) & transgressão. César faz-se encontrar por Odette. Ele, engenheiro, desportista, cuidador da sua saúde, o habitual "bom rapaz", parece; ela, a costumeira perversa, a "elegante" que vive à custa dos homens, que vive o dia de hoje, que acrescenta pó de coca à ponta dos seus «Abdulas» (marca de cigarros), que experimenta «todos os gozos, até os proibidos, principalmente os proibidos...» 
Até aqui, nada de extraordinário, mesmo num romance de 1930: o bom público pequeno-burguês e/ou provinciano já tinha acesso -- talvez de forma menos explícita --, por via das revistas do tempo (A.B.C., Civilização, Europa, Ilustração), a este mundo pouco conforme ao seu temperamento e à sua bolsa.  
Interessantes são as alusões ao jazz e às suas raízes, às danças contemporâneas e a esse enigmático Tomé:
«Não tardou que Tomé, o preto dançarino, executasse os seu primeiro "charleston" dessa noite, ante o olhar atento e assombrado de alguns mirones que tentavam apreender por que artes mágicas ao tan-tan rítmico do jazz, ele conseguia, sem uma falha na cadência, movimentar as suas pernas bambas, as pernas de trapo, conjugando-as com o balancear desconexo dos braços de pêndula. Era um boneco desarticulado que, movido por um maquinismo oculto, adquiria a flexibilidade de um farrapo abandonado ao vendaval impetuoso daquelas músicas de sertão africano, que floresceram por estranha afirmação de raça nessa Norte América intransigente e severa para com os seus negros.» 
Mário Domingues, O Preto do "Charleston", 1930 (cap. II)

sábado, 18 de julho de 2015

microleituras

Um ensaio tão sucinto quanto brilhante, pela fractura que instaurou entre dois modos de considerar a literatura caboverdiana. 
Onésimo Silveira -- que viria a doutorar-se em Ciência Política em Uppsala, membro do PAIGC, tendo enveredado pela carreira diplomática (foi embaixador de Cabo Verde em Portugal, entre outros postos) -- fez publicar pela Casa dos Estudantes do Império (CEI), em 1963, este ensaio que significa um separar de águas entre a geração do grupo da Claridade -- provavelmente a mais brilhante de Cabo Verde no século passado -- e os novos escritores que não se reviam no tipo de literatura praticado por aquela, que classificaram como "evasionista".
Silveira, que nessa altura era um jovem de 28 anos, ousava criticar acerbamente as obras dos Claridosos, de cujas fileira faziam parte nomes como Baltazar Lopes, Manuel Lopes, Teixeira de Sousa e Jorge Barbosa, a quem deu o epíteto de «pontífice do evasionismo». O autor arrasa-os de uma perspectiva ideológica e política, acusando-os, por outras palavras (afinal tratava-se de uma edição da CEI!...), de, por elitismo, superficialidade, inautenticidade e, até, complexo de inferioridade, se afastarem da feição africana da cultura de Cabo Verde, em detrimento de uma orientação metropolitana, portuguesa, europeia. O que naquele tempo (estamos no início da luta armada por parte do PAIGC contra o colonialismo português), ia ao arrepio da urgência do tempo, que a arte, segundo o autor, deveria traduzir. E dava exemplos da nova geração, transcrevendo o poema «Anti-Evasão», de Ovídio Martins.
Não sei até que ponto Onésimo Silveira, do alto dos seus oitenta anos, se revê em muitas asserções deste ensaio muito bem feito, muito datado, também, e, por isso mesmo, de grande valor histórico para Cabo Verde, e igualmente para Portugal.

ficha:
Autor: Onésimo Silveira
título: Consciencialização na Literatura Caboverdiana
edição: 2.ª
editora: UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa)
local: Lisboa
ano: 2015
impressão: Printer Portuguesa, Mem Martins,
págs.: 31
tiragem: 45000

quinta-feira, 16 de julho de 2015

(in)adaptação

2. O medo do desconhecido, quando António avista e entra, de noite, num grande edifício desconhecido: «Lentamente, o casarão foi rodando com a curva da estrada, espiando do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas.» Sensacional. Depois, a azáfama da chegada e o triunfo do cansaço. O estranhamento reservava-se para a manhã do dia seguinte, o Pe. Tomás com o Benedicamus domino, após o toque de alvorada, as Orações da Manhã na capela, de joelhos, estragando o vinco das calças domingueiras, e com direito a correcções de postura por parte de um fantasmático Perfeito, seguidas de período de meditação, pelo "funesto" Pe. Lino. Mas o sentido do rapaz estava na aldeia, e não ali; seguiu-se missa para o seminário inteiro. Esfomeado e com alívio, mas desconfortado com a nova vivência,
 António seguiu para o refeitório, para o primeiro pequeno-almoço no seminário. Um parágrafo:

«Aberta de liberdade, a minha aldeia reverdecia, na força da Primavera, pelos giestais da montanha, , quando o gralhar ferino da sineta me acordou.»

quarta-feira, 15 de julho de 2015

entra Madalena, entra Gaitinhas, entram Maquineta, Arturinho e até o Sr. César, por detrás do seu charuto

Esteiros (1941) - 1.2.
Madalena, ex-tecedeira, tuberculosa irreparável, melancólica e triste pela doença, pela pobreza, pelo afastamento forçado do seu Pedro, ex-empregado de escritório, idealista que perdeu emprego, trabalhando agora longe da família. Madalena angustiada por não ter dinheiro para que o filho continue a estudar, nem para um par de botas ou material escolar -- para João, o Gaitinhas, miúdo sensível, sonhador (sairá ao pai?), feito para um lar feliz que a vida lhe roubaria -- «Manda o nosso filho para a escola. Sem instrução, será um escravo ou um vadio...» -- recomenda Pedro a Madalena, triste mulher do Beco do Mirante, pelo filho que queria ser doutor
Gaitinhas, pois, assim chamado pelo costume de imitar instrumentos musicais; tal como Maquineta (de sua graça, Manuel), pouco esperto mas de uma habilidade de mãos sem igual.
Arturinho, o menino rico que brinca com João; e o pai, o Sr. Castro, ricaço, patrão, capitalista, terratenente, para já previsivel e esquemático por detrás do seu charuto e da sua pouca paciência.
Gaitnhas, da escola para a Fábrica Grande, o mais comovente:
«Amava a vila como ninguém. E, no entanto, a sua infância flutuou entre o beco e o Mirante. Depois é que conheceu as ruas que o levaram à escola. Os outros rapazinhos brincavam lá em baixo, brincavam. Mas ele não deixava o seu castelo de sonho, onde nada lhe faltava, como ao príncipe da história linda que sua mãe contava à beira da enxerga...»

terça-feira, 14 de julho de 2015

provocar o burguês

1. Narrativa de alteridade, A Confissão de Lúcio expõe os  fantasmas de Sá-Carneiro, o fraco autoconceito e o desfasamento sexual. Lúcio Vaz, seu alter ego, encontra-se em Paris, nos idos de 1895, a estudar (ou a fazer que estuda). 
O primeiro interlocutor é um vago conhecimento de Lisboa, o escultor Gervásio Vila-Nova, figura excêntrica, sempre à la page com as últimas tendências artísticas,  e de sexualidade equívoca, por quem Lúcio se deixa inicialmente fascinar.  Vila-Nova será uma figuração de uma grande amizade de Sá-Carneiro tivera em Lisboa, Tomás Cabreira Júnior, cujo fim suicidário é imitado por aquela personagem. («Não foi um falhado porque teve a coragem de se despedaçar.»)
Deambula-se pelos boulevards e casas de chá, discutem-se modas artísticas, cultua-se a blague, provoca-se o burguês, com ditos, com as vestes, com a atitude -- provoca-se o leitor burguês de 1914 com descrições de exibições e cometimentos de um erotismo fora da norma, insinuada ou explicitamente homossexuais. 
Uma americana "bizarra", acompanhada de duas jovens "sáficas" tem opiniões (todos aqui, artistas, emitem juízos peremptórios sobre a arte): a arte é voluptuosidade e decide demonstrá-lo numa soirée, para a qual convida Lúcio e Vila-Nova, e  onde o primeiro encontrará o poeta Ricardo de Loureiro. 
Essa soirée, «orgia de carne espiritualizada em ouro!», encenará, com toda a lubricidade para transe colectivo dos circunstantes, as ideias estéticas da perturbante americana, que sensualmente se entrega aos transportes de «uma música penetrante» vestida por jogos de luz -- «eléctrica, evidentemente» --, que faz sensação, mesmo para aqueles «requintados de ultracivilização e arte» como Lúcio, Gervásio e o recém-entrado na narrativa Ricardo de Loureiro. Um parágrafo, quase ao acaso: 

«Quimérico e nu, o seu corpo subtilizado, erguia-se litúrgico entre mil cintilações irreais. Como os lábios, os bicos dos seios e o sexo estavam dourados -- num ouro pálido, doentio. E toda ela serpenteava em misticismo escarlate a querer dar-se ao fogo.»

Para mim é claro que esta cena da «Orgia de Fogo», como lhe chamou Ricardo de Loureiro, traz os ecos da então esquipática Sagração da Primavera, do Stravinsky, que Diaghilev levara à cena no ano anterior com os seus «Ballets Russes».
Paris será sempre Paris, e em 1895 Oscar Wilde, supremo provocador, ainda estava na cadeia. Não é de admirar que a avidez pequeno-burguesa pelo escabroso se lançasse sobre o livrinho, que parece ter tido alguma saída, como, de resto já acontecera com o Barão de Lavos, de Abel Botelho.

um sorriso sem cor


1.2 A angústia e o medo de Simplício; a mágoa depois da raiva de Olímpia. A incomunicabilidade.


«A mulher, passo após passo, vem à porta despedir-se do marido. O rosto abre-se-lhe num sorriso sem cor e os lábios pousam-lhe um beijo quente na testa. Era um adeus, ou um convite... Ele deu-lhe outro beijo... recuando o busto.»

Antunes da Silva, Suão (1960)

domingo, 12 de julho de 2015

«A criação de mundos epidémicos impelia-o à continua busca de sensações imaginárias onde o espírito folgava nos cansaços da vida burguesa, de ritmo medonho e metricamente coerente»

Início de «Sonho de imaginação», de Ruben A.,texto surrealista publicado em Páginas (1949).
Ruben A., Antologia, edição de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, Roma Editora, 2009.

Um parágrafo:
«À noite escravizado pelos relógios deitava-se na horizontalidade tranquila de colchões aquecidos pela dúvida; -- o mundo consciente esvaía-se num caos -- era a dúvida entre a vida e o sonho, era o subconsciente misturado com espíritos vagos de desejo num adormecer sexuado pelo zimbrar da união.»

sexta-feira, 10 de julho de 2015

«Tanto se crê na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida 'real', entenda-se, que afinal essa vida acaba por se perder.»

O início do Manifesto do Surrealismo, de André Breton (1924).
(Manifestos do Surrealismo, trad. Pedro Tamen, 4.ª ed., Lisboa, Edições Salamandra, 1993)

Dele destaco um parágrafo de ler & calar:

«Querida imaginação, o que eu amo em ti acima de tudo é que não perdoas.»

quinta-feira, 9 de julho de 2015

encontram-se André e Lambaça

1. Noite na estação de Campanhã, o momento do encontro entre dois estranhos: o muito jovem, talvez ainda ingénuo, mas determinado, André (19 anos), e o Lambaça (40/50 anos), um marginal (um homem das margems), fisicamente maciço e idiossincraticamente difícil e arrogante. O narrador refere-se a uma emigração forçada do protagonista, mas fica a ideia de tratar-se de um exílio político. Uma terceira personagem sem nome é vária vezes assinalado como "camarada". André será, portanto, um militante clandestino do PCP, cujo salto na fronteira se impôs.
O estilo de Manuel Tiago é directo, limpo essencial; diálogos de frases curtas, próprio de personagens que não se conhecem e desconfiam do outro.   

(um parágrafo):
                      «André apertou na sua uma mão seca, ossuda e brusca. Agora próximo, de novo se abriu o clarão do cigarro. André mais adivinhou que viu um bigode negro e um rosto anguloso e moreno.»

Manuel Tiago, Cinco Dias, Cinco Noites, 2.ª ed., Lisboa, Editorial Avante!, 1994

quarta-feira, 8 de julho de 2015

livros que me apetecem

Choriro, Ungulani Ba Ka Khosa (Sextante)
O Crocodilo que Voa, Luiz Pacheco (Tinta da China)
Diário da Abuxarda, Marcello Duarte Mathias (D. Quixote)
Fim, Fernanda Torres (Companhia das Letras)
Jacarandá, Francisco Duarte Mangas (Teodolito)





terça-feira, 7 de julho de 2015

e queremos ler mais

É a visão do protagonista, Manuel da Bouça, deitado à sombra de uma árvore, seguindo a azáfama do pássaro e distraído, por momentos, da decisão que já havia tomado intimamente mas ainda não comunicara a Amélia e a Deolinda, mulher e filha: partir, só, para o Brasil.

Enquanto observava, vinha-lhe à memória a infância, tempo de pureza, inocência originária; quando desvia o olhar e vê terras bem tratadas e prósperas, nada que se comparasse com as pequenas courelas que entretanto hipotecara, angariando assim o dinheiro para a viagem -- o olhar tolda-se. Possuí-las «era o seu único sonho, a grande aspiração da sua vida.»; meio de casar bem a filha, acrescentar os bens e alcançar uma notoriedade vedada à sua insignificância social, mimetizando o brasileiro torna-viagem bem sucedido.

O que se verifica com Manuel da Bouça é a escravização à miragem do ter. Ser proprietário, enriquecer, é o desiderato da personagem, que, pelo negativo, é ponto de partida para se descortinar a posição ideológica do autor 

É certo que nela existe algum inconformismo em face da mediocridade da existência naquela aldeia da Frágua; mas como já escrevi, Manuel da Bouça é  um tipo fundamentalmente negativo, mesquinho e ignaro, sublinhado pela sua esplêndia caracterização, a um tempo física e psicológica: «olhos castanhos, pequeninos e movediços», «era tosca cariátide de sobreiro aquele corpo meão mas rijo».

A verosimilhança do rústico analfabeto e simplório a caminho do desconhecido, o seu esquematismo mental, tão bem dados por Ferreira de Castro, aliados ao estilo sóbrio mas não monótono, agarra-nos de imediato. Terminando o capítulo, sabemos que ele partirá. As lágrimas das mulheres da casa não são bom augúrio. E queremos ler mais

segunda-feira, 6 de julho de 2015

viver habitualmente, antes da catástrofe

Carlos Malheiro Dias, em poucas páginas, dá-nos ambiente de cândida inconsciência e de nefasta irresponsabilidade e alheamento do perigo que se aproximava. Sepúlveda era dos poucos que o percebia.

O envelhecimento do pai de Maria do Céu: do brigão da juventude ao pré-ancião, virado para as coisas do espírito e a avisada administração dos bens: «O seu grande corpo flectia um pouco. Os ombros abaulavam. Mas no seu porte envelhecido acrescera a majestade. [...] a sua vida era quieta e sóbria, como a de um guerreiro arrependido que fez votos.»

A nobreza provincial lembra a que, volvido mais de meio século, vamos encontrar em Agustina, salvo algum desbragamento da moda feminina, da França imperial àqueles recantos de Trás-os-Montes: «As mulheres ataram as mão sobre o penteado francês, desceram-nas, atarantadas, até ao seio impudicamente desabrochado no decote, à moda luxuriosa do Império, e suplicaram aos céus que contivesse ao longe os matadores de Maria Antonieta e da princesa de Lamballe.»

O retrato do regente D. João: na ameaça de uma invasão francesa, Sepúlveda não tinha ilusões. Observa o narrador, fazendo-se eco do íntimo de Sepúlveda: «[...] o que havia a esperar de um príncipe educado entre frades, em coros de convento e sacristias de igreja, e a quem causava náuseas uma hemorragia de nariz [?]» 

Entre uma rainha louca e um regente fraco de ânimo, os padres oravam, os políticos intrigavam, os governantes locupletavam-se, «Lisboa permancecia a mesma cidade, a um tempo pomposa e imunda, empavezada de monumentos e maculada de esterqueiras atravessada por procissões quotidianas e toda tlitante dos carrilhões dos lausperenes.»

quinta-feira, 2 de julho de 2015

um mundo em agonia

O ano é 1807, com recuo de algumas décadas, ao fim do ciclo político de Pombal. O cenário no tempo da narrativa é o distrito de Vila real, senhorios do Corgo e da Torgueda, de que é titular D. António Sepúlveda de Vasconcelos e Meneses, pai de Maria do Céu, que completava vinte anos nesse Outubro, e também a capital do Império.
Carlos Malheiro Dias foi também um cultor da História, logrando situar a acção com grande mestria, sem didactismos ou erudições excessivas. Isto só se consegue quando se é um escritor de mão-cheia, como ele o foi.
Há, neste capítulo inicial, vários grandes momentos. Encontramo-los na caracterização psicológica do belicoso morgado, militarão cujo temperamento o casamento e a paternidade aligeiraram, até à viuvez precoce e as urgências da ameaça napoleónica que se antevia; na deliciosa narração da sociabilidade nobreza da província em ocasiões festivas; no retrato da corte, do bizarro regente D. João, príncipe do Brasil, à nobreza ociosa e à padraria e fradaria parasitária que lotavam Lisboa -- cidade que «vivia entre o rosário e o lupanar.»
Disso vou continuar a falar.

uma certa Lisboa dos anos vinte

imagem
«No "Cabeleireiro da moda", em pleno Chiado, trava-se conhecimento com duas elegantes» -- título do capítulo inicial de O Preto do «Charleston», de Mário Domingues, publicado em 1930.

Estamos diante de um retrato de uma certa Lisboa dos anos vinte, boémia e quase clandestina. A Lisboa de mulheres emancipadas (algumas) ou em vias disso (ainda poucas), dos clubes nocturnos, da idade do jazz-band exaltada por António Ferro, da banalização do modernismo de que lemos aqui banal tradução, das mulheres de cabelo curto, à rapaz, do irromper de sexualidades proibidas e ainda reprimidas, do bulício do Chiado como montra de vaidades -- neste particular, prosseguindo uma característica das décadas precedentes.
A primeira "elegante", Odette, afirmando-se livre -- mas cuja liberdade consiste, em boa medida, na livre escolha dos amantes, à custa de quem vive. 
Estamos longe, portanto duma mulher emancipada, na acepção límpida da palavra, nem o narrador no-la quer mostrar enquanto tal; para já, temos o estereótipo de uma mulher que revela, a um tempo, carácter oportunista e audacioso. Audacioso não apenas por se tratar duma "elegante de profissão" (a fronteira com a prostituição é pouco menos que ténue), oriunda de família tradicional, alguém que frequenta por prazer e caça o Roma Clube; audaciosa ainda pela afirmação da sua liberdade sexual. O diálogo com Ilda Fonseca -- a outra elegante com modo de vida quase idêntico, porém sem pisar demasiado o risco das convenções -- na sala de espera do cabeleireiro é revelador pelo à-vontade e desdém com que se refere a Tomé, o preto do charleston, um bailarino negro com quem mantivera uma breve relação: «-- O preto do "charleston"é um homem banal, como os outros homens. Tive-o por amante, como poderia ter um cão de raça exótica... Mas aborreceu-me depressa. É insuportável o seu sentimentalismo de sertão. [...] Tomé [...] não foi um amante, foi um capricho, um bizarro capricho que me tentou, que te tentaria a ti Ilda, se não fosses tão burguezinha e se tivesses, como eu, um temperamento insaciável de inéditos prazeres e de raras sensações.»
Como se vê pela foto junta, Mário Domingues (1899-1977), nascido numa roça de São Tomé, filho duma "contratada" angolana, herdara a tez escura e os traços fisionómicos da mãe, de quem foi separado ainda muito novo, tendo vindo para Lisboa, onde viveu e foi educado pela avó paterna. Jornalista brilhante, vindo das fileiras do anarco-sindicalismo de A Batalha, atravessou boa parte do século passado como free lancer, sendo autor prolífico não apenas das ficções assinadas com o seu nome civil, mas também de muito livro policial, recorrendo a pseudónimos anglo-saxónicos. O reconhecimento como escritor para o grande público viria nas últimas décadas de vida, com as narrativas historiográficas e biografias de reis e  personagens marcantes da história de Portugal.
O meu principal interesse nO Preto do Charleston reside no tratamento da personagem Tomé: até que ponto haverá ou não um reflexo de auto-imagem nessa Lisboa de entre-guerras. 

quarta-feira, 1 de julho de 2015

como O Grito

«Tomei o comboio na estação de Castanheira, depois que o Calhau deixou de me abraçar.» Vergílio Ferreira, Manhã Submersa (1954)

Relato da subtracção à terra, às raízes, em direcção ao desconhecido, ao seminário, num misto de excitação e apreensão por parte do pequeno António Santos Lopes, o António 'Borralho', alcunha que será embaraço diante dos novos colegas que vão entrando no comboio, entre Castanheira (Melo?, Gouveia?) e a Torre Branca (Fundão).
Comboio, que representa, ainda no apeadeiro, da terra, o irremediável do não-retorno: 
«Fechei a porta, apanhei ainda o último adeus do Calhau e sentei-me para chorar quanto quisesse. Em verdade, eu não gostaria de chorar. Mas, espoliado abruptamente da minha infância, aturdido de solidão, sentia-me quase quase bem dentro do choro.»
Há dois aspectos, para além da elaboração sobre o trauma infantil, que me interessaram: a solidão e a montanha.
Solidão que o protagonista sente rodeado de gente, na despedida da mãe, no meio dos outros seminaristas em viagem, no destino que lhe está reservado; a montanha ( a Serra da Estrela) elo de ligação à terra perdida, «a sua liberdade espacial, [...] o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta.»
Solidão, ainda, diante do intimidante edifício do seminário, a sua morada nos anos que se seguiriam, num desespero munchiano: 
«Quieto um momento, no longo pavor da noite, olhei do fundo da minha solidão a mole enorme do edifício e arranquei para a minha aldeia distante um grito de dor tão profundo que só eu o ouvi.»