segunda-feira, 20 de julho de 2015

como farrapo abandonado ao vendaval

Um night club lisboeta, lugar de música & evasão, bailarinos, espanholas ("Carmencita, Paca e Lola...) & transgressão. César faz-se encontrar por Odette. Ele, engenheiro, desportista, cuidador da sua saúde, o habitual "bom rapaz", parece; ela, a costumeira perversa, a "elegante" que vive à custa dos homens, que vive o dia de hoje, que acrescenta pó de coca à ponta dos seus «Abdulas» (marca de cigarros), que experimenta «todos os gozos, até os proibidos, principalmente os proibidos...» 
Até aqui, nada de extraordinário, mesmo num romance de 1930: o bom público pequeno-burguês e/ou provinciano já tinha acesso -- talvez de forma menos explícita --, por via das revistas do tempo (A.B.C., Civilização, Europa, Ilustração), a este mundo pouco conforme ao seu temperamento e à sua bolsa.  
Interessantes são as alusões ao jazz e às suas raízes, às danças contemporâneas e a esse enigmático Tomé:
«Não tardou que Tomé, o preto dançarino, executasse os seu primeiro "charleston" dessa noite, ante o olhar atento e assombrado de alguns mirones que tentavam apreender por que artes mágicas ao tan-tan rítmico do jazz, ele conseguia, sem uma falha na cadência, movimentar as suas pernas bambas, as pernas de trapo, conjugando-as com o balancear desconexo dos braços de pêndula. Era um boneco desarticulado que, movido por um maquinismo oculto, adquiria a flexibilidade de um farrapo abandonado ao vendaval impetuoso daquelas músicas de sertão africano, que floresceram por estranha afirmação de raça nessa Norte América intransigente e severa para com os seus negros.» 
Mário Domingues, O Preto do "Charleston", 1930 (cap. II)

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