sábado, 30 de agosto de 2014

Leituras de 2014 - #44 - QUEBRA QUEIXO - TECHNORAMA VOLUME 2

Para paródias a super-heróis, tenho um padrão: Os Zeróis, do grande, incomparável e único Ziraldo (Alves Pinto). 
Criação de Marcelo Campos em 1991,  Quebra-queixo não parodia um herói específico, mas um género em particular. Como personagem, tem tudo o que é preciso: uniforme, cidade (Buracópolis) e, não uma nem duas, mas três mulheres tórridas, em simultâneo: as trigémeas Ava, Eva e Iva Kerouak (um achado...).
Esta edição tem a especificidade de ter muitos desenhadores e argumentistas convidados (incluindo dois portugueses). Infelizmente, não apreciei a generalidade dos argumentos, ao contrário da maioria dos desenhos, alguns prejudicados pelo formato comic americano.   2**

Ficha:
Autores: Marcelo Campos et alli
título: Quebra-Queixo -- Technorama Volume 2
editora: Devir
local: São Paulo
ano: 2005
págs.: 80

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

leituras de 2014 - #43 80 Poemas de Emily Dickinson

Versão de Jorge de Sena, creditada às suas «Obras», com uma magistral «Introdução», apanágio dos trabalhos críticos e ensaísticos do grande escritor.
A poesia de Emily Dickinson (1830-1866) é breve, por vezes quase aforística, e essencial, lembrando, em certas ocasiões -- e embora mais negra -- a de Sophia de Mello Breyner Andresen.
A biografia de Emily Dickinson pouco mais regista além da vivência sem história ("Great Streets of silence led away / To Neighbourhoods of Pause", c.1870)  numa pequena cidade da Nova Inglaterra, ao contrário duma tumultuosa inquietação interior, que surge a cada passo ("This is my letter to the World / That never wrote to Me", c.1862) : as interpelações descrentes a Deus ("Heavenly Father [...] / We apologize to thee / For thine own Duplicity --" c.1879); a incómoda rasura da diferença ("Assent -- and you are sane -- / Demur -- you're straightway dangerous -- / And handled with a chain -- ", c.1862); a ausência do amor ("Wild Nights -- Wild Nights! / Were I with thee / Wild Nights should be / Our luxury!", c.1861)."Your thoughts don't have words everyday", escreveu num apontamento, por volta de 1861, reflectindo esse acontecer do(s) poema(s) por entre a verdejante calma aparente numa casa de família em Amherst, Massachusetts, em que viveu praticamente na obscuridade e ignorada dos seus contemporâneos. 
Há mais mundo na cabeça dum grande poeta do que em qualquer grand tour que um medíocre de ontem e de hoje possa fazer.   5*****

Ficha:
Autor: Emily Dickinson
título: 80 Poemas de Emily Dickunson
tradução e apresentação: Jorge de Sena
nota preliminar: Mécia de Sena
colecção: «obras de Jorge de Sena»
editora: Edições 70
local: Lisboa
ano: 1970
impressão: Guide-Artes Gráficas, Odivelas
capa: A. Saldanha Coutinho
obs.: edição bilingue
págs.: 211

domingo, 24 de agosto de 2014

leituras de 2014 - #42 TERRA MÃE

Sou da infância como se é de um país -- escreveu o grande Saint-Exupéry, que cito de memória. Um país distante, de que permanecem, nos mais afortunados, as reminiscências da descoberta da vida e do mundo, na presença rediviva dos que nos foram (nos são) queridos.
Este Terra Mãe, que traz o subtítulo Crónicas da Idade Menor, faz-nos participar dessa revelação jubilosa dos primeiros anos, ainda no conforto da segurança (e da disciplina) familiar. É, no conjunto, um relato na primeira pessoa da vida aldeã de lavradores humildes de Maceira, Leiria, saborosíssimos quadros contados com sabedoria,  aprumo  e instinto literários. E refiro-me expressamente a esse aprumo e a esse instinto, pois trata-se de um livro inicial de alguém que, por profissão, lidou durante anos com a linguagem árida dos códigos do Direito. Nada dessa sintaxe obscura nem dessa semântica labiríntica perpassa por aqui; antes um fio de água pura, uma singeleza que não é simplória ou desprovida de humor. Das pequenas transgressões aos medos infantis, umas e outros tomando proporções gigantescas ao palmo-e-meio que o narrador nos deu a conhecer em pouco mais de centena e meia de páginas; o fascínio diante dos oficiais de vários ofícios, de práticas ancestrais (a aldeia portuguesa da década de 1950 permanece, em muitas situações, num contexto de Antigo Regime [não confundir, por favor, com alusões ao Estado Novo!...]); as evocações impressivas da marginalidade, assumida ou forçada, dos pedintes, dos bêbados, dos deficientes mentais; o gozo das prendas da Natureza, a estesia dum nascer do Sol, o impacte do primeiro avistamento do mar, o universo bem delimitado da floresta, com os seus segredos e zonas de sombra; o convívio com pais, avós e demais família que connosco é partilhado. 
Dum ponto de vista mais utilitário, registe-se ainda a fonte que um livro como este é para quem, historiador ou antropólogo, se debruce sobre a vida rural duma aldeia da Estremadura em meados do século XX, facilitado pelo extremo rigor com que são mencionados artefactos, práticas culturais e espécimes animais e vegetais, na sua relação com o homem e no uso que deles se faz, ou fazia.
Crónicas de outro mundo, outro tempo, outro país, escritas por quem, sendo deste mundo, tempo e país logrará, disso estou certo, projectá-los no futuro, já que um livro como este tem um destino marcado, invejável destino: ser periodicamente revisitado ao longo dos tempos, como repositório de património imaterial da comunidade de que se originou.   4****

Ficha:
Autor: Fernando Faria
título: Terra Mãe
subtítulo: Crónicas da Idade Menor
colecção: "Viagens na Ficção"
editora: Chiado Editora
local: Lisboa
ano: 2010
impressão: Publidisa
capa: Guilherme Gustavo Condeixa sobre ilustração de Laurinda Lee e Nuno Rodrigues
págs.: 168

Nota: para que se saiba, conheço e tenho estima pelo Autor, circunstância que, mesmo involuntariamente, esteve sempre presente enquanto o lia. Credite-se, porém, a apreciação do texto acima, aos méritos do livro e ao espírito crítico de quem o recenseou.

sábado, 23 de agosto de 2014

leituras de 2014- #41 PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA

Porque isto é um blogue de notas de leitura, não me eximo a alinhavar umas quantas impressões a propósito deste livro, por muito que me sinta -- e sinto -- impreparado para ir além da superfície do texto.
Já agora adianto que não tenho resistido à tentação, um pouco pedante, de classificar, recorrendo às famigeradas estrelas. Neste caso, com uma margem de liberdade, inversamente proporcional a qualquer escrúpulo que pudesse ter, uma vez que as estrelas significam apenas o eco que a leitura de cada livro teve em mim, e não a veleidade de atribuir-lhe um "valor", para o que, neste e noutros livros, não tenho competência para fazer.
Disto isto, Psicopatologia da vida Quotidiana (1.ª edição, 1904) consiste num tratado sobre as incidências do lapso, do esquecimento, da ilusão da memória -- daquilo a que o senso comum assimilou no último século como acto falhado, nas pessoas cujo comportamento é considerado normativo, e nos quais Freud identifica variadíssimas razões para a intervenção do subconsciente nessas armadilhas quotidianas.
Houve dois aspectos que me impressionaram enquanto leitor: primeiro, a coragem do autor em dar-se a si próprio como exemplo, em numerosas ocasiões; ou as múltiplas vezes em que esses foram recolhidos na Literatura, evidenciando que, antes da psicanálise, os escritores (os poetas, na expressão de Freud) já haviam intuído que por detrás de acções e comportamentos aparentemente anódinos ou acidentais com desfechos dramáticos, poderia haver uma intenção inconsciente.   4****

Ficha:
Autor: Sigmund Freud
título: Psicopatologia da Vida Quotidiana
tradução: José Marinho
editora: Relógio d'Água
local: Lisboa
ano: s.d.
impressão: Tilgráfica
capa: Fernando Mateus
págs.:  309

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

12x25

«A PRIMEIRA TOSQUIA

Em pequeno eu tinha pavor a barbearias e cortes de cabelo. Bastava-me mesmo ouvir a palavra barbeiro para ficar em pele de galinha. Não sei qual seria exactamente a origem da minha fobia, mas o certo é que a simples ideia de que um dia não iria escapar àquele esquisito cadeirão giratório e à parafernália de instrumentos de tortura com que o barbeiro exercia o seu abominável mester, me causava arrepios Das poucas vezes que me atrevera a assomar à porta da barbearia da aldeia e espreitar para o interior, só me ficara o cheiro intenso e enjoativo a pó de talco e brilhantina que de lá vinha e a imagem patética de uma vítima indefesa, sentada naquele trono horrendo, imóvel e embrulhada numa enorme baeta, enquanto o»

Fernando Faria, Terra Mãe -- Crónicas de Idade Menor, Lisboa, Chiado Editora, 2010, p. 25, ls.1-12.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

12x25

«E assim passou a noite com a celada posta, que era a mais extravagante e graciosa figura que se podia imaginar.
Enquanto o estiveram desarmando, ele, que imaginava serem damas e senhoras, das principais do castelo, aquelas duas safadas firmas, com muito donaire lhes repetia:

-- Nunca fora cavaleiro
De damas tão bem servido,
Como ao vir de sua aldeia
D. Quixote o esclarecido:
Donzelas tratavam dele,
Princesas do seu rocim,

ou Rocinante, que este é o nome do meu cavalo, senhoras minhas, e»

Miguel de Cervantes Saavedra, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha [1605], tradução dos Viscondes de Castilho e de Azevedo, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1965, p. 25, ls. 1-12.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

leituras de 2014 - #40 A PONTE SOBRE O DRINA

A categoria "romance histórico" está de tal modo gasta e desacreditada, que classificar como tal A Ponte Sobre o Drina (1945), de Ivo Andrić, constituiria um afunilar sem sentido de um grande romance -- um daqueles livros que enformam a cultura europeia e a civilização ocidental.  "Como, ocidental?", perguntarão os mais apressados que saibam do que se trata, "como, se o pano de fundo é a Bósnia, durante séculos otomana, tornada austríaca já muito dentro do século XIX, iugoslava, finalmente, após a Grande Guerra?"
"Ocidental, pois", digo eu, porque se desenrola numa zona de fronteira, em que se entrecruzam e convivem as três religiões do Livro, e porque desde o conceito do limes romano a Europa sempre se construiu no confronto-entendimento com o outro tornado próprio (os chamados bárbaros germânicos são disso a melhor ilustração).
Existe essa ponte (hoje, património da Unesco), mandada construir por Mehemed-Paxá, um antigo janízaro (tropa de elite de infantaria do sultão, recrutada coercivamente por entre as crianças cristãs); um sérvio que se alcandorou a grão-vizir (primeiro-ministro) do Império Otomano, cargo que ocupou durante catorze anos (1565-1579), até à sua morte, e durante a época de ouro imperial turca. Mehemed-Paxá era natural duma aldeia nas cercanias de Višegrad (hoje integrante da República Sérvia da Bósnia), e a ponte edificada torna-se via obrigatória de circulação entre Oriente e Ocidente. Sob a sua égide se desenrola este romance, abrangendo cerca de quatro séculos e uma multiplicidade de histórias de vida: «Muitos, muitíssimos de nós sentámo-nos ali, pousados sobre esta pedra bem talhada e polida, e, perante eternos jogos de luz nas montanhas e das nuvens do céu, desenredámos os fios dos anónimos destinos das gentes da cidade, eternamente os mesmos, mas eternamente emaranhados de uma nova maneira.»  
 A Ponte Sobre o Drina, ao longo da suas 380 páginas, faz-nos reflectir também sobre a acção do tempo, tão corrosiva no que respeita a sistemas de governo e a ideologias e tão lenta no transformar da essência humana, sabiamente reflectida naquilo que o escritor nos dá como «a filosofia inconsciente da cidade: a vida é um milagre incompreensível, porque se consome e dilui sem cessar, todavia continua rija e sólida "como a ponte sobre o Drina".» Andrić (Prémio Nobel de 1961) é um escritor fino, inteligente e brilhante;    5*****

Ficha:
Autor: Ivo Andrić
títuto: A Ponte Sobre o Drina
tradução: Lucia e Dejan Stanković
edição: 3.ª
editora: Cavalo de Ferro
local: Lisboa 
ano: 2013
impressão: não referido
págs.: 384

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

12X25

«pedregosas. Esta tarefa era, na sua maior parte, feita por trabalho forçado. Assim continuou até aos finais do Outono, altura em que foram interrompidos temporariamente os trabalhos e se deu por concluída a primeira fase da construção.
     Tudo isto foi realizado sob a supervisão de Abidagá e do seu longo bordão verde, que entrou no imaginário popular. Quem quer que ele apontasse com o seu bordão, por ter reparado que mandriava ou não trabalhava como devia, era apanhado pelos guardas, que o espancavam no próprio local, e depois, ensanguentado e inconsciente, atiravam-lhe com água fria e ordenavam-lhe que regressasse ao trabalho. Quando, nos finais do Outono, abandonou a cidade, Abidagá mandou convocar nova-»

Ivo Andrić, A Ponte Sobre o Drina [1945], traduçãon de Lúcia e Dejan Stancović, 3.ª ed., Lisboa, Cavalo de Ferro, 2013, p. 25, ls. 1-12.