terça-feira, 28 de maio de 2013

cárceres (demasiado) visíveis

Francisco Costa, que se situava ideologicamente numa direita católica e conservadora -- ou mesmo reaccionária --, foi um escritor silenciado no pós-25 de Abril, e hoje é um nome esquecido. É verdade que o seu militantismo religioso é um pouco indigesto para quem como eu considera a religião uma fraqueza e, na sua forma organizada e institucional, um abuso que impende sobre os homens livres e um jugo primitivo sobre todos os outros (independentemente de considerar que o exercício da fé é um direito que assiste a todo o indivíduo, devendo essa liberdade ser respeitada desde que não colida com a liberdade dos ateus, dos agnósticos e até, obviamente, dos que não partilham a crença dominante nas respectivas sociedades). 
Mas, apesar do seu proselitismo, Francisco Costa é um romancista de mão cheia -- tal como foi um interessante poeta e ensaísta e um operoso historiador da sua Sintra natal. Jorge de Sena, que não facilitava, classifica-o como «notável romancista católico», embora Costa preferisse considerar-se um católico que escrevia romances, pormenor importante.
Este Cárcere Invisível (1949), Prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências, testemunha a grande técnica romanesca do seu autor, muito bebida, de resto e ao contrário da tradição, na literatura anglo-saxónica, da qual era confesso admirador. Para já, ambiente muito pequeno-burguês lisboeta, protagonista (Eduardo Bandeira Bastos, 17 anos, estudante de Medicina), um pouco obcecado pelo valor individual servido por uma inteligência acima da média que contrapõe aos bem-nascidos das suas relações na academia: «nobreza natural: a verdadeira, a única!» Pai, «principal» empregado numa loja do comércio, baço como o são as materialidades; mãe doméstica e autoritária; irmã, Lu (de Lucinda), por enquanto a parvinha romântica e deslumbrada do costume (lê folhetins, na cabeceira Coração Torturado); Dudu, o protagonista, lê Gorki, que pousa no banco do jardim público «com desafio»...
Na dedicatória, Francisco Costa refere-se a «este drama duma vida sem Cristo», e o cárcere, como se irá depreender, é o materialismo, em especial marxista, então na mó de cima (e, felizmente, ainda não recuperado no seu pensamento totalitário do caixote do lixo para onde os povos que lhe sofreram o jugo o atiraram).  Numa nótula prévia, Costa deixa entrever o fascínio que sobre si exerceu a sua criatura, "esse médico invulgar que se fechou por suas mãos". Esta contenda entre criador e criatura, entre outros méritos do romance, aguça o interesse pela leitura -- até para saber quem levará a melhor e, principalmente, comolevará a melhor... 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

sobre a fortaleza de seiva

Desde 1955 que o leitor pode percorrer, como um prefácio, um dos grandes texto memorialísticos de Ferreira de Castro: a «Pequena História de "A Selva"». O romance já tinha a sua lenda, passados 25 anos sobre a primeira edição, na Livraria Civilização: nunca houvera nada assim no romance português, e muito menos na difusão internacional que ele conseguira; facto inédito na história da nossa cultura, e ainda hoje sabe deus, quando o escritor não se apelida Saramago ou Antunes, nem é um espectro como Camões ou um ícone póstumo como Pessoa.
Ferreira de Castro irá, assim, contar a génese deste livro único, na que seria a sua terceira edição ilustrada (desta vez, pelo magnífico Portinari) -- a terceira de cinco, ao todo e até hoje -- sem falar em adaptações destinadas a um público juvenil... Não sendo uma autobiografia, há um pano de fundo em A Selvaque o é: desde logo o espaço físico em que decorre a acção, o seringal "Paraíso", no rio Madeira, Amazónia; e é-o também, não tenhamos dúvidas, tudo, ou quase, o que escapa à circunstância da personagem principal -- Alberto, um jovem universitário monárquico exilado após a revolta de Monsanto (1919) --: as impressões e as depressões, pois que há também aqui uma boa dose de catarse.
À distância de quase 40 anos, Castro evoca essa uma hora da madrugada de 28 de Outubro de 1914, em que deixa para sempre o seringal, onde estivera desde 1911, com um manuscrito na bagagem. Não era ainda A Selva, que essa, só numa transversal à Avenida de Berna, em Lisboa, de 9 de Abril a 29 de Novembro de 1929, o autor se atreveria a pegar-lhe, não obstante ensaios recorrentes ao longo dos anos, conforme genealogia do texto estabelecida muito mais tarde por Alexandre Cabral.
E texto denso, tão denso quanto o pode ser uma escrita que tem como objecto a própria floresta, a dominar a narrativa, impondo-se logo no título, como a fortaleza de seiva se impusera aos pobres homens que lá se entregavam à extracção do látex.

terça-feira, 21 de maio de 2013

ternura e lágrimas


Dizer que o Húmus (1917) é um livro único e ser único Raul Brandão na nossa literatura é uma banalidade que, por sê-lo, não deixa de ser verdadeira. Todos os livros que li dele são enormes, à imagem da grande estatura e da densidade do seu autor.
«A vila», o microcosmos que é o mundo, a vida que se nos escapa por entre as mãos, enquanto vivemos ninharias, enquanto alguns de nós a vêem fugir como numa peneira e a maioria, tendo essa percepção instintiva e animal, nem pensa nisso, entregando a insignificância da sua passagem pela existência à ganância, à convenção, à emulação até à cova de um cemitério.
A vida é demasiado grande e nós incompatíveis com essa grandeza. «Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...» E onde estão as Teles e as Sousas, que se odeiam, as Fonsecas e as Albergarias, Donas Engrácia e Biblioteca, Restituta e Procópia, o Elias de Melo e o Melias de Melo, podemos substituir os seus nomes pelos da maior parte de nós. «O nada a espera e a D. Procópia a abrir a boca com sono, como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir». E ainda os outros, paisagem como o Gabiru ou adereços como a criada Joana, vivendo a vida dos outros, como se para outra coisa não tivesse vindo ao mundo: «Sempre a comparei à macieira do quintal: é inocente e útil e não ocupa lugar, e não vem Inverno que não dê ternura, nem Inverno sem produzir maçãs.»
O Raul Brandão é isto: ternura e lágrimas.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

o nosso Zola


Escrito em 1895-96, mas só publicado em 1901, eis o naturalismo literário português em toda a sua miséria depatologia social... Botelho é o nosso Zola, sem o talento deste -- mas é o nosso... E, como tal, é preciso lê-lo, tentar resistir ao ínfimo detalhe destes cirurgiões de aleijões sociais e atentar no que tem de bom (porque também o tem). E Abel Botelho, apesar do intrincado da prosa, não deixa de ter vigor, por vezes impiedosamente cru.
Amanhã trata do operariado lisboeta finissecular, do lumpen-proletariado de maus fígados, mau vinho e deficiente nutrição, à beira da miséria -- embora ainda não os mais pobres dos pobres.
Para já, primeiras páginas, apresenta-se-nos Serafim, chegado a casa ao fim duma jornada de trabalho, e Clara, sua mulher ("dois enjeitados da sorte"), a quem é exigido o jantar e o vinho. Surge em seguida Ana, a vizinha, mãe duma rapariguinha "de mal agouradas heptizações na face" (o vocabulário médico-cirúrgico é imprescindível...), cujo pai é o Esticado... Escusado será dizer que a sopa é "uma negra e triste aguadilha" e os purulentos carapaus fritos nadam "numa repugnante e crassa oleosidade". A casa é suja, o mobiliário tosco e, no estuque do tecto "negrejava, por milhares, um constelado planisfério de dejecções de moscas." Inevitável.
Digamos que não é uma leitura leve, mas é imprescindível

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A DENÚNCIA

Estes que aqui vêem
são os delatores. Por três vinténs
vendem seu vizinho.
Que são conhecidos
bem no sabem; mas a gente
lembrar-se-á sempre?
A noite dormem-na mal --
-- muitos dias há
antes do dia final.


Breslau, 1933. Casa pequeno-burguesa. Um homem e uma mulher escutam, de pé, junto à porta. Estão muito pálidos.

A MULHER -- Chegaram lá abaixo. 
O HOMEM -- Ainda não.
A MULHER -- Deram cabo do corrimão. E quando o arrastaram para fora do quarto já vinha inconsciente.
O HOMEM -- Mas eu só disse que a rádio que se ouvia com postos estrangeiros não era a nossa.
A MULHER -- Não foi só isso.
O HOMEM -- Não disse mais nada.
A MULHER -- Não te ponhas a olhar para mim dessa maneira. Se foi só isso que disseste, pronto, foi só isso.
O HOMEM -- É o que eu estou a dizer.
A MULHER -- E porque é que não vais à polícia declarar que eles não tiveram ninguém em casa no sábado?

Pausa

O HOMEM -- À polícia não vou. Aquilo são umas bestas. Não vista a maneira como se atiraram a ele?
A MULHER -- Cada um arranja a cama onde se deita. Para que se meteu ele na política?
O HOMEM -- Mas não precisavam de lhe rasgar o casaco. Um casaco grosso como aquele não temos nós, não.
A MULHER -- O casaco não vem para o caso.
O HOMEM -- Mas não precisavam de lho ter rasgado.

Bertolt Brecht, O Terror e a Miséria no Terceiro Reich, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa, Portugália Editora, s.d.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

do "espírito de parecer vulgar"


Logo nas primeiras três ou quatro páginas de A Sibila (1954),  temos um universo já delimitado, com várias camadas epocais. Um daqueles milagres de talento, surgido da pena duma jovem escritora, com pouco mais de trinta anos.
Uma das coisas que me agrada em Agustina Bessa Luís é a enorme consistência enquanto autora enraizada na sua matriz histórica e cultural, mas, ao mesmo tempo, plena de mundo e de sofisticação, muito ao contrário do aldeanismo de vários romancistas seus contemporâneos.
Os retratos impressivos das mulheres, interessantes, dramáticas, misteriosas, sensuais: Germa: «Ela tinha o espírito de parecer vulgar. Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como o conteúdo de todo um passado [...]» -- como se o narrador falasse da própria Agustina; Quina, o centro de outro tempo, já morta, que será o eixo do romance; Maria da Encarnação, mãe desta, com núpcias pouco ortodoxas com Francisco Teixeira, um "galaró"; Isidra, uma mulher cativante e pouco convencional, amante do dito Teixeira. Muito menos interessantes os homens, do cheio-de-si Teixeira a Bernardo Sanches, burguês aristocratizado por gerações argentárias, suficientemente educado para não deslustrar o ter e o ser, mas demasiadamente plano para Germa(na) -- a tal que tinha «o espírito de parecer vulgar»...
Não é para todos.