quarta-feira, 30 de outubro de 2013

outro parágrafo de LUUANDA

Garrido Kam'tuta veio na esquadra porque roubou um papagaio. É verdade mesmo. Mas saber ainda o princípio, o meio, o fim dessa verdade, como é então? Num papagaio nada que se come; um papagaio fala um dono, não pode se vender; um papagaio come muita jinguba e muito milho, um pobre coitado capianguista não gasta o dinheiro que arranja com bicho assim, não dá lucro. Porquê então roubar ainda um pássaro desses?

José Luandino Vieira, «Estória do ladrão e do papagaio», Luuanda [1963], Lisboa, Círculo de Leitores, 1983.


uma epígrafe de Manoel de Barros

«Há histórias que são tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.»

(escolhida por José Eduardo Agualusa para o livro
Fronteiras Perdidas, 1999)




domingo, 27 de outubro de 2013

um parágrafo d'A FADA ORIANA

Cá fora já anoitecia. A fada pôs-se a caminho da torre do Poeta. A torre ficava longe e o caminho era selvagem, cheio de picos e de pedras. Oriana caminhava cortando a cada instante os seus pés. Não se ouvia cantar nenhum pássaro, não se via correr nenhum coelho, não se via aparecer nenhum veado com o seu ar majestoso e os olhos húmidos de doçura. Em toda a floresta pairava o silêncio, o abandono, a solidão. Quando Oriana chegou à torre, era já noite fechada. E ela levava os pés em sangue e o coração pesado.

Sophia de Mello Breyner Andresen, A Fada Oriana [1958], Porto, Livraria Figueirinhas, s.d. ; ilustrações: Natividade Corrêa.

sábado, 26 de outubro de 2013

VOLÚPIA

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
-- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...



Florbela Espanca, Charneca em Flor / Antologia Poética, org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa, Publicações Dom Quixote.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

um parágrafo de LUUANDA

...Dona Cecília de Bastos Ferreira, sentada na cadeira de bordão, na porta da casa, vê passar o vento fresco das cinco horas, mas as moscas não lhe largam. É Dezembro, calor muito; seu homem, Bastos Ferreira, mulato de antiga família de condenados, saiu já dois quinze dias para negociar no mato perto, acompanhando grande fila de monamgambas, fazendo o caminho a pé com os empregados dele, tipóia não gostava, dizia que homem não anda nas costas de outro.

José Luandino Vieira, «Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos», Luuanda [1963], Lisboa, Círculo de Leitores, 1983.