sábado, 27 de junho de 2015

a féria e a feira: entra Gineto

Gineto é apresentado: o indomável, o revoltado, o aventureiro -- aquele que, avisa o narrador, irá desembocar na marginalidade.
O quadro social é de pobreza extrema, a dos "homens que nunca foram meninos", a quem Soeiro Pereira Gomes dedica o livro.
O escopo do autor vai-se desenvolvendo ao longo deste capítulo inicial: não apenas com a exposição do desvalimento, mas com referência à ilusória pacificação entre classes em fim de temporada e véspera de festança anunciada para regozijo geral; e ainda com a muito marxista alusão à venda da força de trabalho pelo já anti-herói.
Psicologicamente, revela-se também uma característica importante: o mundo é seu, para ele não há propriedade, as vedações não contam; às terras férteis chama.lhe suas («as suas quintas»), e delas se aproveita quando e quanto lhe aprouver. Agora, a caminho da grande diversão anual, hesita: o melhor já fora apanhado, os caseiros e os cães de guarda já não estavam de atalaia; Gineto hesita mas reencaminha-se para a feira -- como se a provável facilidade da transgressão lhe retirasse todo o gozo dela.  

«Desta vez, porém, foi dominado pela Feira. Queria desforrar-se nos cinco dias festivos, sem os berros do mestre e as pancadas do pai. Iria ver os acrobatas do circo; daria tiros ao canhão e passeios nos cavalinhos. E até havia de estancar o ardor do sangue, dentro das barracas de reposteiros vistosos, onde mulheres pintadas vendiam refrescos e beijos. Seria senhor da Feira e do seu destino; livre como um homem. 
Mas era preciso dinheiro, e então ficara no telhal. E, como um homem, vendeu os braços para que o dinheiro tilintasse no bolso das calças.»

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros (1941)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

livros que me apetecem

Como se Nada Fosse, de José Alberto Oliveira (Assírio & Alvim)
A Menina Dentro da Cereja, de Álvaro Manuel Machado (Presença)
O Menino Qiadradinho, de Ziraldo (Booktree)
Só se Morre uma Vez, de Rita Ferro (D. Quixote)



segunda-feira, 22 de junho de 2015

Ainda a exposição de Lúcio

O acto que teve por consequência os dez anos de prisão -- sem haver cometido crime algum e sem alegação disso mesmo em tribunal, pois ninguém o acreditaria --, esse acto reveste-se da excepcionalidade que caracterizam os protagonistas, de tal forma que é apresentado como o clímax duma vida, que, a partir daí, nada de comparável poderia experimentar e nenhuma outra experiência se lhe pode aproximar, diferençando-se, assim, o(s) sujeito(s) dela(s) das existências vulgares:

«Vibradas as sensações máximas, já nada nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou -- apenas -- os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.»

Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio (1914)

sábado, 20 de junho de 2015

"Dá-lhe dois murros bem puxados"

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Ainda sobre a abulia de Simplício Varandas: o carácter fraco e pacífico mal visto no seio de uma vila alentejana, dobrada já a metade do século passado:

«Lembra-se dos conselhos do seu compadre Crispim: "Dá-lhe dois murros bem puxados, bem tesos, Simplício. Há mulheres que só assim é que se vergam à vontade da gente. Casca-lhe uma sova com um pau de marmeleiro, que ela tem bom corpo para aguentar pancada. Fica descansado que o génio há-de arrefecer-lhe."»

Mas Simplício não era homem para bater em mulheres; queria o amor da sua, e escapava-lhe a razão de tanto azedume da parte de Olímpia. Por isso, quando a loba com a carne em desassossego o chama para si, os brios pedem-lhe desforço:

«Nunca mais seriam capazes de contar-lhe histórias de mentiras... Mas amanhã, quando o Crispim viesse com a mesma lamúria: "ouve, Simplício, anda para aí uma corja a rosnar isto e aquilo...", ele lhe diria, muito simplesmente: "Era melhor que te metesses na tua vida, compadre! Não te admito, ouviste?!" E voltava-lhe as costas, ou então, punha-se direito, com o punho cerrado e lá vai obra, batia-lhe, cansava-se a bater-lhe mesmo!» 

Isto era uma analepse do narrador, pois nós, leitores, sabemos que Olímpia entretanto saíra de casa.

Antunes da Silva, Suão (1960)


quarta-feira, 17 de junho de 2015

o princípio revelado em 1975: «Com 19 anos incompletos, André viu-se forçado a emigrar.»

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Não sei em que década foi redigida esta novela preciosa de Cunhal, talves ainda no exílio, talvez logo depois do 25 de Abril. É o segundo título de Manuel Tiago, que, com o romance Até Amanhã Camaradas alimentou o mito do romancista na clandestinidade, entretanto desaparecido. Será com A Estrela de Seis Pontas (1994) que Cunhal se revelará como ficcionista. 
Tive muito boa impressão na primeira leitura. Ainda não calhou ver o filme de Fonseca e Costa.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

microleituras

Um manifesto escrito no final do século passado, fruto de vários anos de meditação e maturação pelo seu autor. Cascais, como se sabe é uma vila (teve carta de D.Pedro I em 1364, autonomizando-se de Sintra). Mas é também um contínuo urbano, da Quinta da Marinha a Carcavelos. Quando o texto foi publicado, a situação urbanístca e suburbana (a chamada "Costa da Sombra"...) era ainda muito má, mas começava então a civilizar-se, com equipamentos desportivos e culturais e infraestruturas básicas. 
O que a «Cidade Global» de Cascais tem de inovador, ainda hoje, é que não se trata de uma mera elevação administrativa duma povoação de vila a cidade; mas, pelo contrário, a sua compreensão enquanto um  todo urbano, com racionalidade de gestão, delimitada pelo Parque Natural de Sintra-Cascais -- cidade que contemplaria no seu seio diversas vilas, a começar pela própria vila de Cascais, mas também a da Parede e outras que fossem ganhando dimensão. A cidadania está na cidade.

o incipit: «Todas as cidades tiveram um princípio, uma evolução e terão um dia certamente um fim.»

ficha:
aitor: José Vieira Santos
título: Cascais -- A Cidade Global
subtítulo: 10 Pontos para Reflexão
editora: Fundação D. Luís I
local: Cascais
ano: 1999
capa: foto de Fotografia César, Cascais
impressão: Grafilinha
págs.: 29
tiragem: 2000


domingo, 14 de junho de 2015

o princípio em 1902: «D. António Sepúlveda de Vasconcelos e Meneses, senhor do morgadio do Corgo, festejava nesse dia soalheiro de Outubro, em 1807, os vinte anos viçosos da linda Maria do Céu.»

Uma entrada de sabor camiliano, num romance histórico da alvorada do século passado. Carlos Malheiro Dias (1875-1941), um dos grandes do seu tempo, integra a multidão dos escritores importantes que o país desconhece. País sem elites, descamba neste miséria. A capa, dum academismo glorioso, é de Alfredo Morais.

sábado, 13 de junho de 2015

o princípio em 1930: «-- Tem que esperar um bocadinho, 'mademoiselle' Odette -- disse Clara, a gentil empregada do "Cabeleireiro da Moda", muito elegante na sua bata e sorridente na face agarotada, a que un cabelos curtos, impossivelmente louros, oxigenados, davam um vago aspecto de costureira parisiense.»

Sobre O Preto do «Charleston» e Mário Domingues há muitos motivos de interesse. Foi um autor prolífico, com o seu próprio nome e sob uma panóplia de pseudónimos, alguns em língua inglesa, com que assinava os policiais, respondendo ao preconceito anglo-americano que o público impunha; foi jornalista freelancer, sendo um dos nomes importantes do anarco-sindicalista A Batalha; obteve enorme audiência com os seus trabalhos de divulgação histórica, editados na década de 1960 pela Romano Torres (e agora relançados pela Principia). 
Mário Domingues era negro, de São Tomé, desde criança a viver em Lisboa, onde estudou, sendo colega de escola do futuro célebre Repórter X (Reinaldo Ferreira). Imagina-se o que não seria os constantes desafios de inventiva entre estas duas mentes ágeis e inquietas...
O Preto do Charleston, pois: escrito por um negro, e publicado em 1930 (quantos homens de letras negros -- não me refiro a mulatos ou mestiços -- haveria então na ronceira Lisboa?); o charleston, assimilado ao jazz (música de pretos, pois então...); e as mulheres que durante essa década se emancipavam, com maior ou menor sucesso: lembro-me de Florbela Espanca, Diana de Liz, Maria Lamas, Judith Teixeira...
Quando o li pela primeira vez, fiquei decepcionado. Pareceu-me que ele se deixara inebriar pelos pelos vapores etíílicos e pelo fumo de Abdulas no ambiente concorrido e deletério dos clubes e cabarés com que Lisboa procurava disfarçava a tal ronceirice . Mas talvez mereça outra oportunidade.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

o princípio em 1954: «Para o fim do 'Vagão «J»' diz Vergílio Ferreira que talvez eu, António Borralho (A. Santos Lopes, de lei) viesse um dia a escrever a nossa história.»

Como ainda não li o Vagão «J», não sei se a história a que o Borralho se refere diz também respeito à pré-adolescência comum no seminário, a tal manhã submersa, embora o protagonista-narrador que previsivelmente tomará a vez e a voz do autor, alertar, logo de sequida.que esse nossa  se trata da sua gente.
É curioso: muito pouco me ficou deste livro, ao contrário de cenas do filme de Lauro António; talvez por isso mesmo: as imagens do filme foram-me tão fortes, que a posterior leitura não as conseguiu apagar.
Gosto muito da capa de Dorindo de Carvalho. oportunamente falarei dela.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

o princípio em 1941: «Fecharam os telhais.»

Assim, seco e directo, Soeiro Pereira Gomes inicia Esteiros -- na minha memória obra-prima, obra eterna. O romance está divido em quatro partes, tantas quantas as estações do ano; e o fecho dos telhais, fábricas ou fabriquetas de tijolos, sinaliza que o trabalho áspero do Verão chegara ao fim. Os efeitos dessa mudança, desenvolve-os Soeiro em seguida

terça-feira, 9 de junho de 2015

uma loba no cio

Um quadro opressivo da infelicidade conjugal: Olímpia desgostava do marido e desgostava-se; mas o desejo por vezes era mais forte. Ela era forte, e como uma loba no cio, chama-o para si. ("Loba" lhe chama o narrador.) Quanto a ele... 

«Simplício levantou-se, rápido, um sorriso a bailar-lhe nos lábios, os olhos acesos de alegria. Postou-se em frente da mulher, hesitante, taranta. Todo ele era tremuras. Ela, sentada, afagou-lhe as pernas, puxando-lhe, ao de leve, as calças de cotim para cima. O homem vai beijá-la, cheio de glória, como no dia do casamento... Senta-se-lhe no colo, acaricia-lhe os longos cabelos sedosos. A casa está toda enfeitada de silêncio. A noite, lá fora, é um abismo de negrura, não há lua no céu, não se ouve o farfalhar das poucas árvores, na planície. Olímpia, de olhos fechados, parece estar longe dali e morde-lhe suavemente a polpa  de uma orelha e ouve-se a sua respiração opressa, os lábios roçando-lhe a nuca, com o seu bafo moreno e apetecido. De súbito, o braço que tenta enlaçar-lhe o busto, nervoso e precipitado, bate no candeeiro a petróleo que se encontra em cima da mesa. O candeeiro cai em estilhas. O estrondo dos bocados de vidro, a chama bravia da torcida no meio do chão da casa, fazem levantar a mulher da cadeira de palha, assustada e repentinamente rancorosa:
--Estúpido! Desajeitado!...»

Antunes da Silva, Suão (1960):


quinta-feira, 4 de junho de 2015

«Olímpia saíra de manhãzinha, pouco depois do nascer do sol, sem casaco e sem lenço, de corpo bem feito, desprezando as leis da vila.»


Quando Simplício Varandas entra em cena, já Olímpia, a mulher, saíra de casa; e o desenrolar da acção do primeiro capítulo de Suão evoluirá sob as evocações do protagonista.
O espaço e o tempo são relativamente esfumados: uma vila ficcionada no Baixo Alentejo, Sam Jacinto, num período contemporâneo (alusão a comboios, cinema, futebol), mas, por enquanto, sem maiores definições.
As personagens principais, Simplício e Olímpia, são sujeitos de um casamento caracterizado pela incompreensão e pela mágoa. Ele, passivo, apático, melancólico; ela, sanguínea, violenta. Crispim, compadre de Simplício, e o Dr. Maldirro Real, proprietário e arrendatário das terras trabalhadas por Varandas, são personagens coadjuvantes: aos alertas de Crispim para o alegado comportamento da mulher de Simplício, causadora de falatório, contrapões a excepcional benevolência do Dr. Maldirro para com o rendeiro -- excepcional, porque intransigente com os outros rendeiros -- a que seria atribuível uma relação com Olímpia.
Para já, ficamos a saber que havia uma tensão entre ambos tornada insanável, a que Simplício atribui uma diferente origem (ela, filha de ferroviário, habituada a ver mundo, metida ali naquele fim do dito); e, infere o leitor, à sua própria esterilidade, que o diminui como homem e angustia ambos.
Olímpia interessa-me. Em próximo post, pô-la-ei a falar.  

terça-feira, 2 de junho de 2015

o princípio em 1914: «Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos: nada podendo fazer já esperar e coisa alguma desejando -- eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.»

Ao contrário da poesia de Sá-Carneiro, que me comove e/ou entusiasma, a prosa de A Confissão de Lúcio (novela publicada em 1914), é-me quase insuportável, pelos ouropéis e arrebiques -- que, apesar de tudo, estão ausentes deste começo. O estilo envelheceu, envelheceu mal, e cansa-me. Por isso, quando li a novela, fi.-lo com sacrifício. Vou fazer agora mais uma tentativa de passear por ela, acompanhando o infortúnio de Lúcio, acusado de matar o poeta Ricardo de Loureiro (estes nomes, estes nomes!....). E então, o que pretensamente vamos ler será, como diz o narrador-protagonista «um documento», uma confissão, um memorial, um relatório -- expediente bastas vezes utilizado, lembro-me, de repente do Viver!, de Assis Esperança (1921), de O Intervalo, de Ferreira de Castro (póstumo, mas escrito cerca de 1936) e de Manhã Submersa, de Vergílio Ferreira (1954). 
Confesso, por minha vez, que me esforçarei.