domingo, 24 de agosto de 2014

leituras de 2014 - #42 TERRA MÃE

Sou da infância como se é de um país -- escreveu o grande Saint-Exupéry, que cito de memória. Um país distante, de que permanecem, nos mais afortunados, as reminiscências da descoberta da vida e do mundo, na presença rediviva dos que nos foram (nos são) queridos.
Este Terra Mãe, que traz o subtítulo Crónicas da Idade Menor, faz-nos participar dessa revelação jubilosa dos primeiros anos, ainda no conforto da segurança (e da disciplina) familiar. É, no conjunto, um relato na primeira pessoa da vida aldeã de lavradores humildes de Maceira, Leiria, saborosíssimos quadros contados com sabedoria,  aprumo  e instinto literários. E refiro-me expressamente a esse aprumo e a esse instinto, pois trata-se de um livro inicial de alguém que, por profissão, lidou durante anos com a linguagem árida dos códigos do Direito. Nada dessa sintaxe obscura nem dessa semântica labiríntica perpassa por aqui; antes um fio de água pura, uma singeleza que não é simplória ou desprovida de humor. Das pequenas transgressões aos medos infantis, umas e outros tomando proporções gigantescas ao palmo-e-meio que o narrador nos deu a conhecer em pouco mais de centena e meia de páginas; o fascínio diante dos oficiais de vários ofícios, de práticas ancestrais (a aldeia portuguesa da década de 1950 permanece, em muitas situações, num contexto de Antigo Regime [não confundir, por favor, com alusões ao Estado Novo!...]); as evocações impressivas da marginalidade, assumida ou forçada, dos pedintes, dos bêbados, dos deficientes mentais; o gozo das prendas da Natureza, a estesia dum nascer do Sol, o impacte do primeiro avistamento do mar, o universo bem delimitado da floresta, com os seus segredos e zonas de sombra; o convívio com pais, avós e demais família que connosco é partilhado. 
Dum ponto de vista mais utilitário, registe-se ainda a fonte que um livro como este é para quem, historiador ou antropólogo, se debruce sobre a vida rural duma aldeia da Estremadura em meados do século XX, facilitado pelo extremo rigor com que são mencionados artefactos, práticas culturais e espécimes animais e vegetais, na sua relação com o homem e no uso que deles se faz, ou fazia.
Crónicas de outro mundo, outro tempo, outro país, escritas por quem, sendo deste mundo, tempo e país logrará, disso estou certo, projectá-los no futuro, já que um livro como este tem um destino marcado, invejável destino: ser periodicamente revisitado ao longo dos tempos, como repositório de património imaterial da comunidade de que se originou.   4****

Ficha:
Autor: Fernando Faria
título: Terra Mãe
subtítulo: Crónicas da Idade Menor
colecção: "Viagens na Ficção"
editora: Chiado Editora
local: Lisboa
ano: 2010
impressão: Publidisa
capa: Guilherme Gustavo Condeixa sobre ilustração de Laurinda Lee e Nuno Rodrigues
págs.: 168

Nota: para que se saiba, conheço e tenho estima pelo Autor, circunstância que, mesmo involuntariamente, esteve sempre presente enquanto o lia. Credite-se, porém, a apreciação do texto acima, aos méritos do livro e ao espírito crítico de quem o recenseou.

2 comentários:

  1. Sabendo, embora, como é "bloguisticamente" incorrecto usar o espaço de comentário para agradecer, só me ocorre escrever: MUITO OBRIGADO!
    Acho que, desta vez, o meu amigo se excedeu. Bem haja!

    (F. Faria)

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    1. Não tem que agradecer, caro amigo -- eu é que agradeço como leitor. Este post é um mero registo objectivo de leitura,muito aquém, aliás, do que a obra pede enquanto registo memorialístico e repositório de muita e boa informação, impecavelmente registada.
      O livro não pode deixar de ser lido pelos que, no futuro façam a história cultural, social, económica e mental da sua região, e não só. Aqueles que o fizerem terão o gosto de receber a informação de alguém que se deu como Autor ao papel (aos leitores; ao futuro), e que será identificável, mesmo no século XXIII (esperemos que os historiadores ainda existam nessa altura!...). Quer dizer: juntarão o útil ao agradável, a leitura dessa fonte histórica que será "Terra Mãe", como documento e como texto literário.
      É o que penso, e por isso o felicito.
      Um abraço

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