sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Caiena na Cova da Beira

«A minha família só tinha senhores. Nenhuma das mulheres caíra na fraqueza de, em desespero de virgindade, casar já entradota com um funcionário público ou alguém que exercesse ofício ou profissão. Ou casaram com quem deviam ou aguentaram-se, heróicas, solteiras e castas até à morte. Às vezes tenho pena de não poder orgulhar-me duma mulher que tivesse disparado dali numa daquelas audazes e românticas fugas de heroína de folhetim. Se calhar, a província era uma espécie de Caiena só com mar e tubarões à volta de cada prisioneira.»

António Alçada Baptista, Tia Suzana, Meu Amor (1989)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

leitura de 2014 #4 -- A CARTA CONSTITUCIONAL


As circunstâncias rocambolescas da Coroa portuguesa depois da morte de D. João VI (1826), com D. Miguel no exílio, regência da infanta Isabel Maria, império de D. Pedro no Brasil, entourage da rainha viúva Carlota Joaquina... uf!, e o povo de Lisboa, bem guardado, mas na expectativa... 
A circunstância de não se fazer hoje historiografia assim, tão colada ao conjuntural, mesmo quando a pequena história possa espoletar os efeitos mais momentosos e inesperados, a verdade é que o acontecimento, o facto -- ou a percepção que dele possamos ter -- não pode nem deve ser ignorado, nem o papel do indivíduo pode ser subestimado, pesem todas a condicionantes.
Rocha Martins é um excelente exemplo. Os grossos volumes sobre o fim da monarquia são interessantíssimos e até essenciais para se comprovar a temperatura política do tempo. Monárquico liberal, opositor activo ao Estado Novo, estes escritos tinham também um objectivo cívico e político. Repare-se no antetítulo, "Liberdade Portuguesa"; tal como o explicit, nada inocente:  «A Liberdade [com maiúscula...] estava implantada. Cabia aos seus adeptos defender o estatuto que D. Pedro IV outorgara, mas praticando as virtudes que exigem as doutrinas dos homens livres: o respeito pela opiniões alheias, dentro da Lei, e sem ofensa das que professamos. / Só assim existirá o verdadeiro equilíbrio do espírito democrático e liberal.»   3***

Ficha:
Autor: Rocha Martins
título: A Carta Constitucional
colecção: "Cadernos Históricos" #6
edição: Edições Excelsior
local: Lisboa
ano: s.d.
impressão: Tip. Mascote, Lisboa
págs.: 32

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

mas sempre salvos

«É a amiga mais íntima da Felícia. Juntas são temíveis. Nenhum doente lhes escapa. Esperam, espiam, compram os criados, intrigam e caem-lhes em cima, à hora da morte, pregando-lhes Deus, o inferno e as labaredas eternas. Alguns protestam. Debalde: as servas de Deus não desanimam, nem os largam. Rezam extensas ladainhas em livros encapados de negro, sentam-se dia e noite à cabeceira dos leitos, pregam, choram, chamam em altos gritos pela misericórdia infinita e subjugam-nos afinal, aterram-nos, matam-nos às vezes -- mas sempre salvos.»

Raul Brandão, A Farsa (1903)


leituras de 2014 #3 -- HÁ DOIS LADRÕES SEM CADASTRO

Conto extenso de Maria Archer, talvez a mais importante romancista portuguesa da primeira metade do século XX. Feminista, a condição da mulher subjaz sempre à sua obra artística.
No tempo em que as mulheres eram dependentes e passavam da alçada dos pais para as dos marido, quando se viam sós, por viuvez, como é o caso da protagonista, se não tivessem um pé-de-meia por herança, ficavam à mercê da caridade de terceiros, ou,  permitindo-lhes ainda a idade, tratariam de arranjar novo cônjuge, como estratégia de sobrevivência, preferivelmente com posses, títulos ou bens ao luar. Nem que o recurso fosse o logro, a ladra por cadastrar... Mas o título fala-nos em dois ladrões sem cadastro.   3***

Ficha:
Autor: Maria Archer
título: Há Dois Ladrões sem Cadastro 
colecção: "A Novela" #4
edição. Editora Argo
local: Lisboa
ano: 1940
impressão: Neogravura, Lisboa
págs.:42

domingo, 26 de janeiro de 2014

um Rembrandt fora da moldura

«O rosto estava aliás singularmente desvanecido pelo cansaço da idade, e mais ainda por aqueles pensamentos que desgastam igualmente a alma e o corpo. Os olhos já não tinham pestanas, e viam-se apenas alguns traços de sobrancelhas sobre as suas arcadas salientes. Colocai essa cabeça sobre um corpo franzino e débil, rodeai-a de uma renda resplandecente de brancura e trabalhada como uma fina rede, lançai sobre o gibão negro do ancião uma pesada corrente de ouro, e tereis uma imagem perfeita desta personagem à qual a ténue luminosidade da escada emprestava ainda uma cor fantástica. Dir-se-ia uma tela de Rembrandt a caminhar silenciosamente e sem moldura na negra atmosfera de que este grande pintor se apropriou.»

Honoré de Balzac, A Obra-Prima Desconhecida (1831)
tradução: Silvina Rodrigues Lopes

leituras de 2014 -- #2 ARTE E BELEZA NA ESTÉTICA MEDIEVAL


Um mergulho de Eco nos conceitos de beleza abordados nos grandes textos teológicos da Igreja medieval. Não havendo discurso teórico enquanto tal, a estética estava associada à acção divina de que resultava o belo, porque forçosamente associado à ideia de bem. Bem e belo confundem-se nas noções de harmonia e proporção, na Natureza como na acção humana. Tudo o que se afaste da norma -- o mundo à volta da paz dos mosteiros, onde se meditava e reflectia --, acaba por configurar uma transgressão ao ideal de que a obra de Deus não se ocupou.   4****

Ficha: 
autor: Umberto Eco
título: Arte e Beleza na Estética Medieval (Arte e Bellezza nell'Estetica Medievale)
tradução: António Guerreiro
colecção: "Dimensões" #23
editora: Editorial Presença
local: Lisboa
ano: 1989
ano da edição original: 1987
impressão: Lello & Irmão, Porto
págs.: 198

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

melhoras da morte

«[...] o médico quase tinha só por função assistir à primeira parte da morte. A certa altura, desenganava a família, retirava-se e entrava o padre com um certo orgulho por mais aquela provada impotência dos homens perante os insondáveis desígnios de Deus. Isto para não falar do caso em que o enfermo -- o doente, quando estava para morrer, era enfermo -- melhorava com a extrema-unção.»
António Alçada Baptista, Tia Suzana, Meu Amor (1989)

P&R -- Miguel Miranda

Tem alterado livros de contos e romances. Como praticante de xadrez, é o mesmo gosto pelas partidas longas e rápidas?   Sim, é uma boa imagem. As partidas rápidas têm uma magia especial. No entanto, quando as analisamos com lentidão percebemos que se calhar fizemos algumas asneiras. É preciso um raciocínio fulgurante para em cinco minutos levar a bom porto uma partida. O romance, ou os longos jogos de xadrez, equivalem a construir uma grande catedral. Temos de equilibrar todos os aspectos do projecto. Continuando com as comparações, em linguagem enóloga, o romance tem um fin de boca prolongado. O conto, pelo contrário, tem a magia de se conseguir, em pouco tempo, criar um momento, um flash, um suspense, uma precisão.

Entrevista a Luís Ricardo Duarte, JL #1130, 22.I.2014

leituras de 2014 -- #1 NOSSA SENHORA DE PARIS

Quasimodo é património mundial e Esmeralda não lhe fica atrás. Grande obra da literatura romântica, excessiva e destemperada, é crítica dos poderes (o retrato de Luís XI é cruelmente  impressivo) e anseia pelo progresso.   4**** 
Ficha
autor: Victor Hugo
título: Nossa Senhora de Paris (Notre Dame de Paris)
tradução: revista por Jorge Reis
colecção: «Colecção Vítor Hugo»
editora: Guimarães Editores
local: Lisboa
ano: s.d.
ano da edição original: 1831
impressão: não referida
capa: não atribuída
págs: 383

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

um burgo de pedra e sonho

«Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta névoa e granito formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontoam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila, envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas...»
Raul Brandão, A Farsa (1903)

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

cachaça do bem-querer

«Seja velório rico, seja pobre, exige-se, porém, constante e necessária, a boa cachacinha; tudo pode faltar, mesmo café; só ela é indispensável; sem seu conforto não há velório que se preze. Velório sem cachaça é desconsideração ao falecido, significa indiferença e desamor.»

Jorge Amado, Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966)

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

4 ou 5 págs.: S. JOÃO D'ARGA

Nota de uma peregrinação à capela de S. João d'Arga, por ocasião das festas anuais em intenção do orago, publicada em Páginas V (1965), contemporânea, pois, do romance A Torre da Barbela (1964), para a memória do qual nos remete irresistivelmente este relato de ascensão devocional, lembrando o improvisado guia conduzindo turistas indiferenciados ao cimo da barbacã medieval.
Aqui, não se trata de turismo, mas sim tradição milenar, religiosa e profana, que Ruben nos participa como uma espécie de repórter, entre o divertido e o cúmplice com esta multidão minhota que, anualmente, sobe e desce, cumprindo promessas ("patas são quatro, sobe-se de gatas, voltar atrás é perder o equilíbrio"), com as provações exigidas pela crença arreigada ("Estão na Idade Média. Todos os anos o 28 de Agosto é corrido a carpir e a borgar naquelas alturas.").
O texto é limpíssimo de precisão, de quem se sente parte daquele habitat, apesar de fazer vida por Porto e Lisboa, praias da Granja e  Cascais, como lhe proporcionava o estatuto familiar de bem-nascido, e mais franças e araganças, como lhe exigiam as funções diplomáticas e universitárias. Prosa aliciante, recurso a efeitos de estilo como a repetição, transmitindo uma viva noção das dificuldades daquele custoso passeio ("[...] começa o planalto de pedras, pedras sempre pedras, pedras desde o princípio do mundo, pedras poemas, sabendo que são pedras, pedras sim."; "Cá vamos subindo, sempre subindo, subindo de cabeça baixa [...]"). Vencidas as dificuldades e cumpridos os preceitos que as promessas ao santo exigem, é tempo de folguedo, de borga.

O incipit«S. João d'Arga - 28 de Agosto.»


Um parágrafo: «Pusemos arraial na encosta, pedra ao pé de pedra. Lá fomos entre o formigueiro. A capela é mesmo viva pelas coisas de pedra colorida e pela situação escondida do altar-mor. Tem uma estátua do Santo Miguel a cutilar o Senhor Diabo que é uma maravilha. Todos entre Lima e Minho têm respeito ao Senhor Diabo para ele estar quietinho. Nada de obras do Diabo! O Senhor Diabo merece toda a consideração. Deitei lá umas cinco coroas para não ter nada com as iras e más disposições do Senhor Diabo.»
Ruben A., Antologia, organização de Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz, Lisboa, Roma Editora, 2009, pp. 89-94.



domingo, 19 de janeiro de 2014

oh, as mulheres!...

«Qual de nós não tem pela mulher, uma ou cem vezes, varrido o sossego, renegado o dever, lançado o brio à margem, arriscado a reputação, comprometido a fortuna?... Aí reside, meu caro, a finalidade, a causa, o motivo essencial da nossa existência. Da vida o encanto, o apanágio é este. Nem verdadeiramente há por que nos orgulhemos da nossa condição de Homem, se não sofrermos muito pela Mulher.»
Abel Botelho, O Livro de Alda (1898)

sábado, 18 de janeiro de 2014

o passado é um lugar estranho

«Como é que nós agarramos o passado? Será que o podemos fazer? Quando eu era estudante de medicina uns brincalhões no baile de fim de ano soltaram na sala um leitão que tinha sido coberto de gordura. O bicho corria por entre as pernas, escapava-se quando o tentavam agarrar, grunhia imenso. Alguns caíram ao tentar segurá-lo, e fizeram uma figura ridícula. Muitas vezes o passado comporta-se como o leitão.»

Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert (1984)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

como uma pastilha

«Estava igualmente nua e, como estava inclinada, a sua posição fazia sobressair um belo cu muito redondo, moreno e aveludado, cuja pele fina estava tão esticada que parecia prestes a estalar. Entre as duas nádegas alongava-se o sulco bem fendido e peludo de morena, onde se distinguia o buraco proibido redondo como uma pastilha.»

Guillaume Apollinaire, As Onze Mil Virgens (1907)
tradução: Maria Manuel Moura

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

do simplismo

«Ali, por África não é assim: uma casa é de todos: é um entrar e sair constante: é os amigos e os primos que vêm não sei donde e dormem por ali, em qualquer lugar. Mais do que uma vez fomos dormir um para cada lado, porque a não-sei-quem chegava da Holanda com os filhos e não tinha onde ficar. Em rigor, eu deveria admirar esta generosidade mas não: aquilo a que chamamos civilização é, em certa medida, um sucessivo perder de virtudes, às vezes uma acumulação de vícios.»

António Alçada Baptista, O Riso de Deus (1994)

a imagem mais recuada

imagem daqui
«A imagem mais recuada que ainda guardo, sempre perfeitamente igual, com a mesma luz de fim de tarde, é a de um jantar debaixo de uma ramada, na antiga casa dos meus avós paternos, em Figueiró da Lixa. Imagem do quotidiano, sem nenhum acontecimento, apenas movimentada com a entrada no pátio da tia Ermelinda.»

Alexandre Babo, Recordações de um Caminheiro (1993)

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

como quem arregaça as mangas

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«Classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, classe dos mansos perdidos, repetiam os degraus à medida que os subia e a enfermaria se aproximava dele tal um urinol de estação de um comboio em marcha, chefiada por uma vaca sagrada que afim de descompor as subordinadas retirava a dentadura postiça da boca, como quem arregaça as mangas, para aumentar a eficácia dos insultos.»

António Lobo Antunes, Memória de Elefante (1979)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

4 ou 5 págs.: A MINHA FILOSOFIA

Durante um mês de convalescença, o narrador empreende a leitura dos clássicos do pensamento ocidental, levando-o, por sua vez, em duas tardes, a desenvolver um corpus pessoal de divagações metafísicas, cuja publicação pretende seja póstuma. Generosamente, faculta ao leitor três esboços do edifício teórico que construiu: a "Crítica do Terror Puro", "A Dialéctica Escatológica como Meio de Enfrentar os Seixos" e "O Cosmos a Cinco Dólares por Dia", mais, generoso, "Duas parábolas" e uma mancheia de "Aforismos".
É de Woody Allen, e do realizador de "Manhattan" só se espera a irrisão dos lugares-comuns contemporâneos, do mais rasteiro à alta cultura dos maître-à-penser

incipit: «O desenvolvimento da minha filosofia aconteceu como segue: a minha mulher, tendo-me convidado para provar o seu primeiro soufflé, deixou cair uma colher dele no meu pé, fracturando vários ossinhos.»

um parágrafo: «O universo é apenas uma ideia passageira na mente de Deus -- um pensamento bonito e incómodo, sobretudo se se acabou de pagar a "entrada" para comprar uma casa.»

Woody Allen, «a minha filosofia», Para Acabar de Vez com a Cultura, tradução de Jorge Leitão ramos, 4.ª ed., Amadora, Livraria Bertrand, 1981, pp. 31-36. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

só papel

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«Em relação a Flaubert nunca nada durou muito tempo. Morreu há pouco mais de um século e tudo o que deixou foi papel. Papel, ideias, frases, metáforas, prosa estruturada que se transforma em som. Isto é precisamente o que ele teria querido; só os seus admiradores é que sentimentalmente se queixam.»

Julian Barnes, O Papagaio de Flaubert (1984)
tradução: Ana Maria Amador


a mãe

«A senhora Darling ouviu falar pela primeira vez de Peter Pan quando estava a arrumar as ideias dos filhos. É costume, à noite, todas as boas mães, depois de os filhos estarem a dormir, inspeccionarem os seus espíritos e porem as coisas nos seus lugares para a manhã seguinte, colocando nos lugares próprios muitas das coisas que andaram desarrumadas durante o dia. Se pudessem ficar acordados (mas claro que não podem) veriam a vossa mãe a fazer isso e achariam muita graça observá-la, é muito parecido com arrumar gavetas. Vê-la-iam de joelhos, alegremente, espero, de volta de algumas das vossas alegrias, pensando onde teriam ido descobrir, fazendo descobertas muito agradáveis e outras menos, apertando isto contra o rosto, como se fosse um gatinho e afastando apressadamente outra coisa. Quando acordam de manhã, a maldade e as paixões ruins com que se deitaram foram dobradas e guardadas no fundo da vossa mente e por cima, lindamente arejados, estão estendidos os vossos pensamentos mais bonitos, prontos para serem usados.»

J. M. Barrie, Peter Pan (1911)
tradução: Lucília Filipe


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

P&R -- Alberto Manguel

Neste Dicionário [dos Lugares Imaginários] também convivem viajantes com não viajantes. Para conceber um lugar imaginário não é preciso sair de casa? O saber de experiência feito não conta?   A imaginação é já por si uma experiência. Júlio Verne escreveu tantas e tão extraordinárias viagens e não foi um grande viajante. Em alguns casos, leu sobre o assunto e depois escreveu. Também não há registo de Dante ter ido ao Inferno, ao Purgatório ou ao Paraíso. A descrição vem toda da imaginação. Nós confiamos quando um livro nos diz que o autor esteve num determinado sítio, mas ele não precisa de ter esyado mesmo lá. Grande autores, como Ryszard Kapuscinski ou Bruce Chatwin mentiram sobre os lugares em que estiveram. Mas contam uma história ainda melhor. Os seus testemunho são mais reais do que a experiência que nós poderíamos ter. Se viajasse até Lisboa o meu relato seria seguramente muito aborrecido. M;as se lermos o romance de Pascal Mercier, Comboio Nocturno para Lisboa, entramos numa espantosa aventura. Lisboa é uma cidade que também existe por causa da imaginação de escritores que não disseram a verdade.

Entrevista a Luís Ricardo Duarte, JL #1129, 8.I.2014

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

4 ou 5 págs.: A TRUTA

H. Lopes de Mendonça
por
Columbano Bordalo Pinheiro
Durante a Guerra Civil de 1245-1247 -- que também opôs dois irmãos, D. Sancho II, deposto pelo papa, e o Conde de Bolonha, futuro Afonso III --, conta-se uma estória lendária, protagonizada pelo alcaide-mor de Celorico da Beira, Fernão Rodrigues Pacheco (o primeiro deste nome).
Sitiado pelo próprio infante, que o alcaide tinha por usurpador, Afonso quis vergar Celorico pela fome, até que, em intervenção supostamente divina, uma águia trazendo nas garras uma truta que acabara de caçar, deixa-a cair milagrosamente no recinto sitiado, levando a um estratagema que tem sido glosado noutras situações semelhantes (v. g. Deuladeu Martins): com o pouco de farinha que restava, Pacheco manda fazer pães, que, envolvendo o peixe de água doce, vai oferecer ao Bolonhês, através dum emissário, como preito respeitoso ao irmão do rei -- o único legítimo que reconhecia. D. Afonso levantará o cerco nesse mesmo dia.
Henrique Lopes de Mendonça (Lisboa, 1856-1931), foi um oficial de Marinha, grande historiador dos Descobrimentos e da Expansão, poeta (autor dos versos de A Portuguesa, recorde-se), dramaturgo e ficcionista com acentuada inclinação para a narrativa histórica. A História era a sua paixão, como historiador das Navegações ou ficcionista. 
Neste conto, publicado originalmente em Capa e Espada (1922), Mendonça dá lastro à petite histoire e à lenda, pretexto para uma recriação lúdica dum tempo medieval conturbado; e fá-lo com a competência do histroriador.
O estilo é opulento, no bom sentido, português de lei. Mais do que uma historieta lendária, interessa-me e regala-me essa riqueza vocabular, incluindo os arcaísmos, que serve a narrativa.

O incipit: «Na açoteia da torre de menagem, Fernão Rodrigues Pacheco, debruçado sobre uma aberta das ameias, medita.»

Um parágrafo: «E, como a resposta se resuma a um gesto ríspido de impaciência, o agostinho prossegue. Em voz ungida de piedade, relembra as agonias daqueles meses de apertado cerco; o contínuo desfalque dos defensores, dizimados por ascumas e gorguzes, por virotões e pedregulhos, e mais ainda pela pestilência e pela fome. A custo se colhe um cafis de apodrecidos cereais nas húmidas matamorras. A chama dos fornos devora a lenha dos vigamentos, os sarrafos arrancados às mesas, aos escanos, às portadas. Dentro em pouco, toda a parte combustível da vila se reduzirá a cinzas para se transformar numa ilusão de pão as varreduras dos celeiros, a palha dos esteirões, a erva das ruas. À míngua de um mesquinho almanho, sequer, servem de repasto aos sitiados as alimárias mais imundas.»

H. Lopes de Menonça, «A truta», 14 Novelas Histórias Portuguesas -- De D. Afonso Henriques à Batalha de Aljubarrota, selecção anónima (de José Saramago?), Lisboa, Estúdios Cor, 1965, pp. 125-132 


segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

na periferia

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«Com efeito, o príncipe Vibescu caminhava como se pensa em Bucareste que caminham os Parisienses, isto é em passinhos apressados e rebolando as nádegas. É encantador! e quando um homem caminha assim em Bucareste, nenhuma mulher lhe resiste, mesmo a esposa do Primeiro Ministro.»

Guillaume Apollinaire, As Onze Mil Virgens (1907)
tradução: Maria Manuela Moura

de Ambrose Bierce

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«ABERRAÇÃO, n. Qualquer desvio de outra pessoa relativamente aos nossos hábitos de pensamento, quando ainda não se lhe pode chamar demência.»

Dicionário do Diabo (1911)
tradução: Rui Lopes

domingo, 5 de janeiro de 2014

Saumur

«Há em certas cidades da província casas cuja visão inspira uma melancolia igual à que nos causam os claustros mais sombrios, as charnecas mais estéreis ou as ruínas mais lúgubres. Talvez haja nestas casas, ao mesmo tempo, o silêncio do claustro, a aridez das charnecas e a desolação das ruínas. Nelas a vida e o movimento são tão tranquilos, que um estranho as julgaria desabitadas, se não encontrasse de súbito o olhar pálido e frio duma pessoa imóvel, cujo rosto meio monástico assoma a um parapeito, ao ruído de um passo desconhecido.»

Balzac, Eugénia Grandet (1833)
tradução: Jorge Reis

É improvável que um livro que começa desta forma não seja um grande livro. E é mesmo.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

explodem capítulos de Gorki

«A mulher dos amendoins, a que faltava o cotovelo esquerdo, montava a sua indústria de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava à minha avó em discursos verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido, através de cuja violência explodiam capítulos de Máximo Gorki da Editorial Minerva.»

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas