sábado, 12 de abril de 2014

4 ou 5 págs. - ELOGIO DO SUBÚRBIO

Criar um mundo num mínimo de espaço com um máximo de literatura é atributo dos grandes cronistas, e António Lobo Antunes é um deles.
Esta é a primeira do primeiro Livro de Crónicas, e o subúrbio  de que fala é Benfica em finais de 1940 inícios de 1950, um lugar recuado da Lisboa de então, fronteira do que, a partir da década seguinte se tornaria, de facto, o subúrbio, com toda a carga que a palavra ganhou.
E nesse país que é a infância -- como escreveu Saint-Éxupéry --, os vizinhos eram característicos, os comerciantes castiços, os amigos eram filhos desse povo que vivia na periferia. Era aí que se iniciava a camaradagem no desporto (no Futebol Benfica) e se começava a olhar de esguelha para as mulheres, as boas mulheres dos outros, inacessíveis a bicos imberbes; era o tempo da clandestinidade dos cigarros, como dos primeiros versos. 
Um país que agora só existe na memória do cronista, sepultado pelos prédios de habitação, do qual só resta um vestígio vegetal, a acácia da quinta da família, ao pé da qual ele, querendo, continua a ouvia a chamada da mãe para o jantar.

Incipit. «Cresci nos subúrbios de Lisboa, em Benfica, então quintinhas, travessas, casas baixas, a ouvir as mães chamarem ao crepúsculo
     -- Víííííííítor
     num grito que, partido da Rua Ernesto da silva, alcançava as cegonhas no cume das árvores mais altas e afogava os pavões no lago sob os álamos.»
Um parágrafo: «O dono da Farmácia união jogava o pau, a esposa do proprietário da farmácia Marques era uma grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas acesas, que me faziam esquecer a mulher de Sandokan ao vê-la aos domingos a caminho da igreja, o sineiro a quem chamavam Zé Martelo e que tocava o papagaio Loiro  na Elevação da missa do meio-dia em vez do A treze de Maio obrigatório, possuía uma agência funerária cujo prospecto-reclame começava «Para que teima Vossa Excelência em viver se por cem escudos pode ter um lindo funeral?», e eu escrevia versos nos intervalos do hóquei, fumava às escondidas, uma das minhas extremidades tocava Jesus Correia e a outra Camões, e era indecentemente feliz.»

António Lobo Antunes, Livro de Crónicas, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998, pp. 13-15.

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