quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: A GRANDE SUBVERSÃO


Reminiscência intensa da infância, do dia-a-dia familiar metodicamente organizado com pulso matriarcal. A casa era das mulheres, da mãe, das criadas; pai e filho tinham de haver-se com aquele despotismo funcional, desse por onde desse, pelo alheamento ou deserção do lar, no caso do progenitor; pela revolta do filho através da indisciplina, raiz do comportamento futuro do narrador. Até que doença grave da criança leva a boa da mãe a deixar para trás a rigidez dos planos domésticos, aos quais todos se submetiam, para velar e zelar pelo filho, em perigo de vida. Era o tempo da II Guerra, dos noticiários da BBC. Coincidente com a paz, dá-se a cura do petiz, originando novo reequilíbrio naquele microcosmos.

O incipit: «Eram terríveis as rotinas, quase um rito iniciático, uma sagração.»

um parágrafo: «De certo modo não havia lugar para o pai nem para mim. Havia lugar para a nossa presença na ordem incessante dos ritos, a horas certas. Não para as cavalgadas solitárias que cada um tinha necessidade de fazer sem ser interrompido pela tarefa do dia. Mesmo que fosse o dia de receber visitas, com chá e bolos. Não tínhamos direito à nossa desordem interior, éramos prisioneiros de um espaço contantemente invadido por obrigações cujo sentido não podíamos entender. Não era por mal, era assim.»

Manuel Alegre, «A grande subversão», O Homem do País Azul [1989], 7.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 49-56.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

livros que me apetecem

Dos livros recenseados no último número de A Batalha, anoto:

Crónicas de um Tempo Sombrio (2009-2012), de João Freire (Esfera do Caos);
Roteiros da Memória Urbana - Lisboa, de João Freire e Maria Alexandra Lousada (Colibri).
 


leituras de 2014 - #11 ASTÉRIX ENTRE OS PICTOS

A criação de Astérix foi um achado. Gauleses irredutíveis ao ímpeto marcial do Império Romano, auxiliados nessa atitude de resistência por uma misteriosa poção mágica que atribui a quem a toma uma força sobre-humana. Criação servida pela inteligência de Goscinny, permitindo vários níveis de leitura, possibilitando que crianças e adultos a fruíssem de acordo com a informação que tivessem. As próprias alusões à realidade francesa do momento eram torneadas sem dificuldade pelos leitores de outras nações.
Acresce um estilo de enorme amplitude plástica de Uderzo, refinando-se de álbum para álbum com crescente subtileza, ilustrando na perfeição o espírito goscinnyano. Após a morte de René, Uderzo foi muito criticado na sequência que empreendeu a solo, mas nem sempre (ou quase nunca) justamente: A Odisseia de Astérix ou As Mil-e-Uma Noites de Astérix, por exemplo, estão ao melhor nível do falecido argumentista -- recorde-se, um dos maiores da história da BD...
E este Astérix Entre os Pictos? Digo já que a leitura foi agradável, a ideia-base é boa (Astérix e Obélix visitam, por força das circunstâncias, mais uma paragem do mundo antigo, desta vez o território da actual Escócia); mas nem Ferri é Goscinny nem Conrad é Uderzo. Argumento e desenho funcionam, embora sem rasgo; perdeu-se o espírito, um wit, uma malícia muito própria dos autores originais, presentes desde o já distante Astérix, o Gaulês (1961). É como se a dupla Goscinny & Uderzo tivessem recuado ao tempo do Humpá-pá, o Pele-Vermelha (1958) -- criação notável, aliás --, como se Astérix fosse uma série característica de revistas como Tintin  ou Spirou (mais juvenis) e não daquela a que realmente pertenceu, a Pilote, chefiada pelo próprio R.G. (não confundir...)...   3***

ficha
Autores: Jean-Yves Ferri & Didier Conrad
título: Astérix Entre os Pictos 
edição: 3.ª
título original: Astérix Chez les Pictes
tradução: Maria José Magalhães Pereira e Paula Caetano
editora: Asa / Leya
local: Alfragide
ano: 2013
impressão: Eigal, Rio Tinto
págs.: 48


domingo, 23 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: EL MAR

Castilla, de Azorín, publicado em 1912, é um livro que peneira a alma castelhana, com um estilo único de poesia e melancolia que me faz muito recordar o seu compatriota e contemporâneo (e Prémio Nobel) Juan Ramón Jiménez, admirável poeta. 
De Castela não se vê o mar. «El mar» é um dos capítulos desta obra preciosa. Castela está fechada sobre si mesma, nos povoados ermos e nas estradas poeirentas, distante da enigmática imensidão para lá da linha do horizonte, do bulício portuário estuante de vida, e dos acidentes que ela, a vida, traz.

O incipit: «Un poeta que vivía junto al Mediterráneo, ha plañido a Castilla porque no puede ver el mar.»
um parágrafo: «No puede ver el mar la vieja Castilla: Castilla, con sus vetutas ciudades, sus catedrales, sus conventos, sus callejuelas llenas de mercaderes, sus jardines encerrados en los palacios, sus torres con chapiteles de pizarra, sus caminos amarillentos y sinuosos, sus fonditas destartaladas, sus hidalgos que no hecen nada, sus muchachas que van a pasear a las estaciones, sus clérigos con los balandranes verdosos, sus abogados -- muchos abogados, infinitos abogados -- que todo lo sutilizan, enredan y confunden. Puesto que desta ventanita del sobrado no se puede ver el mar, dejad que aquí, en la vieja ciudad castellana, evoquemos el mar. Todo está en silencio: allá en una era del pueblo se levanta una tenue polvareda; luego, más lejos, aparece la sierra baja, hosca, sin árboles, sin viviendas. Cómo es el mar? Qué dice el mar? Qué se hace en el mar? Recordemos, como primeira visión, las playas largas, doradas Y solitarias; una faja de verdura se extiende, dentro en la tierra, paralela al mar; el mar se alleja inmenso, azul, verdoso, pardo, hacia la inmensidad; una banda de nubecillas redondeadas parece posarse sobre el agua en la línea remotísima del horizonte. Nada turba el panorama. La suave arena se aleja a un lado y a otro hasta tocar en dos brazos de tierra que se internan en el agua; las olas vienen blandamente a deshacerse en la arena; pasa en lo alto, sobre el cielo, una gaviota.»

Azorín, Castilla, edição de Inman Fox, 14.ª ed., Madrid, Editorial Espasa Calpe, 2004, pp. 153-158.


sábado, 22 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.:DOS PERIGOS DO RISO

Dois amigos em viagem, na estrada Luanda-Sumbe, no tempo da guerra civil angolana. Numa paragem fortuita, o narrador vê um velho acompanhado por dois enormes lagartos. Estes tinham um olhar estranho, e o próprio velho tinha qualquer coisa de lagarto no semblante. Serão lagartos especiais, riem-se -- e poderão até falar, afiança o velho. Interessado, atraído, o narrador compra um, o maior, «o mais espertíssimo», o Leopoldino. A viagem prossegue sem novidade, até que, já perto do Sumbe, o lizardo desata-se a rir -- e esse riso perturba o segundo homem de tal forma que ele entendeu não só que lhe era dirigido, como o tornava, ameaçadoramente, alvo de mofa a propósito de algo porventura inconfessável... («Deve ser por causa daquilo com a Ana». Quem seria essa Ana, não o sabia o narrador, e muito menos nós, leitores...). Daí a querer dar cabo do Leopoldino foi um passo, levando o dono a impor-se e a tratar ele mesmo do assunto, executando três disparos sobre a caixa que acomodava o animal. Mas não esperava que, num ápice, muito perto, soasse um metralhar em resposta... Fogem ambos para o jipe, sem pinga de sangue; parecia que acabavam de desencadear uma operação militar. Mas, mesmo na aflição, o segundo homem não deixava de sentir alívio, pois alegava que «o tipo sabia de mais»...
Contos para viajar é o subtítulo deste volume de Agualusa, cuja epígrafe de Manoel de Barros ("Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas."), foi sabiamente escolhida.

incipit: «Só quando parámos o jipe é que os vi.»

um parágrafo: «Porém, quando estávamos quase a chegar ao Sumbe, o lagarto começou a rir. Sei que parece estranho, mas é a pura verdade: Leopoldino ria. Não ria exactamente como uma pessoa, claro, ria como uma pessoa semelhante a um lagarto, mas ria. Eram gargalhadas secas, cínicas, que estalavam dentro do jipe de uma forma vagamente assustadora. Eu ouvi-o e não tive vontade de rir. O meu amigo, que conduzia o jipe, ficou ainda mais inquieto:»

José Eduardo Agualusa, Fronteiras Perdidas (1999), 5.ª ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2009, pp. 13-19.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

este, por acaso, é meu

Eu, à época
«A Geração de 70 ouvira aos seus progenitores os relatos da luta pela liberdade na guerra civil. Chegada a sua hora, nada se passava que não fosse a modorra contente e burguesa da Regeneração fontista, fomentando a instauração do capitalismo num país atrasado, dotando-o das infraestruturas do capitalismo necessárias ao desenvolvimento económico.»
Ricardo António Alves, «Eça no Egipto», Taíra #11, Grenoble, 2001.

livros que me apetecem

Há muito livro que me interessa no JL desta semana,  mas destaco só estes:
Anatomia da Melancolia, de Robert Burton (Quetzal)
Decifrar a Arte em Portugal -- O Barroco, de Paulo Pereira (Círculo de Leitores)
Escrevo para Ajustar Contas com a Imperfeição, de Ricardo Guimarães (Modo de Ler)
Os Marginais e Outros Contos, de João Melo (Caminho)
A Metametamorfose e Outras Fermosas Morfoses, de Rui Zink (Teodolito)
A Misericórdia dos Mercados, de Luís Filipe Castro Mendes (Assírio & Alvim)
Páginas Escolhidas, de Samuel Johnson (Quetzal)
Perfumes Eróticos em Tempo de Vacas Magras, de Manuel da Silva Ramos (Parsifal)

e recomendo:
Acta Est Fabula -- Memórias III -- Lourenço Marques Revisited, de Eugénio Lisboa (Opera Omnia)




A Noite é uma apavorada

«[...] A Noite é uma apavorada, tem horror às trevas.
Com um beijo, a Manhã apaga cada estrela enquanto prossegue a caminhada em direcção ao horizonte. Semi-adormecida, bocejando, acontece-lhe esquecer algumas sem apagar. Ficam as pobres acesas na claridade, tentando inutilmente brilhar durante o dia, uma tristeza. Depois a Manhã esquenta o Sol, trabalho cansativo, tarefa para gigantes e não para tão delicada rapariga. É necessário soprar as brasas consumidas ao passar da Noite, obter uma primeira, vacilante chama, mantê-la viva até crescer em fogaréu. Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o Sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso, quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? Secreta? Anda na boca do mundo.»

Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá -- Uma História de Amor ([1948] 1976).

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

P&R - Rui Zink

E porque escolheu estas histórias e autores?   É um livro em diálogo com outros livros. Assim, o leitor fica mais culto, o que em tempo de crise é bom. Pelo mesmo preço de um Zink leva também um Kafka, um Cortázar, um Stephen King, um Borges, um Oscar Wilde, um Harold Pinter, um Velázquez e dois Mirós.

Entrevista a Maria Leonor Nunes, JL #1132, 19.II.2014

uma vila encardida

«Uma vila encardida -- ruas desertas -- pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva -- o castelo -- restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida.»

Raul Brandão, Húmus (1917)

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: texto 1 de O CADERNO VERMELHO

O Caderno Vermelho que Auster publicou em 1993, é uma selecção do seu verdadeiro canhenho de situações e experiências insólitas. O primeiro texto. muito breve, fala-nos de quando acompanhou uma amiga na Irlanda, em 1972, a um escritório de advogados que dava pelo sugestivo nome de Argue and Phibbs, ou seja: Discussões e (substituindo o ph por f, dando a homófona "fibs") Petas, sem dúvida nome pouco recomendável para uma firma de causídicos...

Incipit: «Em 1972, uma grande amiga minha teve alguns problemas com a Justiça.»
um parágrafo: «De acordo com as minhas últimas informações (datando de há três ou quatro anos), a firma continua a prosperar.»

Paul Auster, O Caderno Vermelho, tradução de Fátima Freire de Andrade, 8.ª edição, Porto, Edições Asa, 2002, pp.5-6.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

livros que me apetecem

Do livros de que fala o Expresso esta semana, apetece-me:
Os Caminhos Habitados, de Fernando Guimarães (Afrontamento)
Ginecologia, de Rosalina Marshall ((não) edições)
Os Saneamentos Políticos no Diário de Notícias, de Pedro Marques Gomes (Alêtheia)





leituras de 2014 - #10 A LÃ E A NEVE



O fio da narrativa expõe-se numa penada: Horácio pastor de Manteigas, abrira os olhos para outras realidades que não a vida elementar que transcorria entre as faldas da Estrela e os redis nas aldeias, na sequência do serviço militar cumprido nos arredores de Lisboa, mais precisamente em Cascais. Decide, então, adiar o casamento com Idalina, previsto para ser celebrado após a tropa -- e mudar de vida. Quer tornar-se operário têxtil, ali mesmo, em Manteigas, ou na Covilhã, centro mais importante, única possibilidade que vê para fugir à pobreza que confina aquelas existências.
Após percalços vários, que tornam a narrativa coerente, segue-se a entrada num mundo diferente, em que a consciência de pertença a uma classe socialmente bem delimitada, o proletariado, irá mudar, paulatina mas radicalmente, a forma como o protagonista se vê a si próprio no mundo.
Publicado em 1947, A Lã e a Neve levanta múltiplas questões no âmbito histórico-cultural, das quais só enumero algumas, e brevemente.
1. A circunstância de A Lã e a Neve ser um romance neo-realista heterodoxo: Ferreira de Castro, visceralmente libertário, anarquista por formação, convicção e coração, não acolhe a doutrinação canónica marxista-leninista, largamente teorizada a partir de meados da década de 1930. A vanguarda da classe operária aqui não tem ligações ao Partido [Comunista Português]; antes é protagonizada por  abencerragens do sindicalismo anarquista e revolucionário que caracterizou o movimento proletário organizado durante a I República: o "Marreta" -- esperantista e vegetariano -- e os que lhe estão próximos.
2. Apesar de referenciado como livro subversivoA Lã e a Neve é um romance fortemente político, de oposição que não foi apreendido nem o seu autor ao que se saiba incomodado. Já por várias vezes me referi à particular circunstância política de 1947, de suavização da ditadura em face da vitória aliada na II Guerra Mundial. Por outro lado, o reconhecimento grande que Castro tinha no estrangeiro, muito em especial em França, terá sido, de certo modo dissuasor de medidas repressivas, dado o contorno de escândalo de que se revestiria. Finalmente, e escrevo isto pela primeira vez, não posso deixar de especular (embora a pertinência deste alvitre esteja por demonstrar), o caso curioso de a editora de Ferreira de Castro, a filha de Delfim Guimarães, Maria Leonor da Cunha Leão, ser casada com Francisco da Cunha Leão, um intelectual conotado com o regime e seu funcionário superior.
3. Deixando a história político-cultural, sublinho os recursos estilísticos do escritor, as suas poderosas descrições e a mestria ficcional, que confirmam as dos romances anteriores, e de que o episódio da tempestade de neve será, possivelmente, uma das mais extraordinárias aflorações em todo o romance. Acresce a espesssura psicológica das personagens -- também sem surpresa para quanto já estavam familiarizados com os seus romances.

Poderia soltar mais uns milhares de caracteres a propósito deste livro. Para não abusar, direi apenas que um romance como A Lã e a Neve pertence à categoria daquelas obras de arte que nos definem como cultura e civilização, como portugueses; e que Ferreira de Castro é membro, um dos mais brilhantes e representativos, daquela família de escritores que tem no seio espíritos como os de Júlio Dinis e Eça de Queirós até Alves Redol, Manuel da Fonseca ou José Saramago, passando por Aquilino Ribeiro e Raul Brandão.   5*****

Ficha:
Autor: Ferreira de Castro
título: A Lã e a Neve
editora: Guimarães Edtiores
local: Lisboa
ano: 1990~
edição: 15.ª
ano: 1990 [data da primeira edição: 1947]
impressão: Oficinas gráficas de Guimarães Editores, Lisboa
págs.: 358

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

à conquista do fracasso

«Éramos brutalmente ambiciosos. Aspirávamos a fracassar. Mas não a fracassar sem mais nem menos e de qualquer maneira: aspirávamos a fracassar de uma forma total, radical e absoluta. Era a nossa forma de aspirarmos ao sucesso.»

Javier Cercas, A Velocidade da Luz (2005)
tradução: Helena Pitta.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: O PASSEIO DA SOMBRA

O narrador depara-se com uma sombra azulácea deambulando pelas ruas da cidade, sem o corpo correspondente. Segue-a, e testemunha a abordagem daquela a uma jovem com quem se cruza. Percebendo a perturbação da rapariga, seguindo a sombra o seu caminho, estabelece diálogo com ela, e confirma: não apenas viram ambos a sombra, como esta pertence(u) a uma pessoa querida da transeunte, o seu noivo, morto na guerra por uma carga de obus. O narrador esforça-se por continuar no encalço daquele espectro singular; quando este pára sobre um canteiro de flores, como que aspirando o perfume que exalavam, repara no seu perseguidor, estabelecendo com ele uma muda comunicação, que acabará no cemitério, à beira do túmulo do corpo que lhe pertencera. O remate final do conto faz uma optimista profissão de fé: a morte não mata a memória de nós nos outros...
O que sucede quando estes outros, por sua vez, deixam o mundo dos vivos, isso já não coube nessas linhas.

o incipit: «Era um pouco antes do meio-dia.»
um parágrafo: «Recuei de imediato com medo de pisá-la. Receava fazer-lhe mal. Sentia uma piedade imensa pelo abandono. Mas, de repente, num acto de correspondência inexplicável, pareceu-me que ela me dava a entender que era feliz, e que os seus soluços outra coisa não eram que soluços de ventura, que havia nela uma vida imortal que lhe permitia sobreviver ao corpo desaparecido e enlear-se em tudo o que este havia acarinhado. A felicidade dessa sombra era feita da sua presença nesses locais que havia frequentado.»

Guillaume Apollinaire, «O passeio da sombra», O Rei Lua [1916], tradução de Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, s.d., pp. 67-71.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

leituras de 2014 - #9 PRIMEIRO AS SENHORAS


Edgar José Golinhas Lopes, dono do Bar Afunda -- em tempos também Edgar W. Lopes, detective privado -- presta declarações a um inspector da Judiciária, como alegada vítima de um rapto. O depoimento serve para Edgar relatar aventuras e desventuras amorosas, conjugais e extras, com desvios para os tempos em que fora W. Lopes, interessantes também nesse e noutros capítulos.
Nada tenho contra o humor, muito, muito pelo contrário; mas pilhéria permanente, a recorrente piadola em tom de mangas alfacinha, satura o texto, tornando-o cansativo.   2**

Ficha:
Autor: Mário Zambujal
título: Primeiro as Senhoras
subtítulo: Relato do Último Bom Malandro
edição: Oficina do Livro 
n.º de edição: 3.ª
local: Cruz Quebrada - Dafundo
ano: 2006
págs.: 150
impressão: Guide - Artes Gráficas
capa: António Belchior
tiragem: 5000

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

livros a comprar e a ler (sabe deus quando)

Do Expresso /Actual desta semana:

Uma Editora no Subterrâneo, por vários autores (Letra Livre):
O Zelota -- A Vida e o Tempo de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan (Quetzal).

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Amigo leitor...

«Vós que tendes este livro nas mãos puras; vós que vos refestelais numa fofa poltrona e dizeis para convosco: "Talvez isto me divirta." Depois de lerdes os infortúnios íntimos do Tio Goriot, jantareis com apetite, lançareis a vossa insensibilidade à conta do autor, taxá-lo-eis de exagerado e acusá-lo-eis de poeta. Ah, mas não! Garanto-vos que este drama não é nem uma ficção, nem um romance. All is true.»

Balzac, O Tio Goriot (1835)
tradução: Adelino dos Santos Rodrigues

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Leituras de 2014 - #8 FIBRILAÇÕES



A poesia na tensão do dizer-se ao outro; na tensão de dar-se ou refractar-se ao amor; poesia do sobressalto breve da sístole e da diástole; poesia do sangue, da vida e da morte.
Ana Hatherly, poeta, artista plástica, ensaísta, erudita... é uma das grandes figuras da cultura portuguesa.   4****

Ficha
Autora: Ana Hatherly
título: Fibrilações
edição: Quimera
local: s.l.
ano: 2005
capa: Ana Hatherly
impressão: Digital XXI
págs.: 91
obs.: edição bilingue, português/castelhano, tradução de Perfecto E. Cuadrado

livros a comprar e ler (sabe deus quando)

Dos livros de que fala o JL desta semana, apetecia-me:

A Dama e o Unicórnio, de Maria Teresa Horta (Dom Quixote)
A Guerra que Acabou com a Paz, de Margaret MacMillan (Temas e Debates)
Hav, de Jan Morris (Tinta da China)
Hipopótamos em Delagoa Bay, de Carlos Alberto Machado (Abysmo)
Judeus Ilustres de Portugal, de Miriam Assor (A Esfera dos Livros)
O Nome Negro, de António Carlos Cortez (Relógio d'Água)
Veneza Pode Esperar, de Rita Ferro (Dom Quixote)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

leituras de 2014: #7 CARÍSSIMAS 40 CANÇÕES

Quando o maior cantautor (horrível palavra) português vivo decide corresponder a um convite para escrever sobre quarenta canções que o tenham marcado, a propósito das quatro décadas do seu percurso enquanto músico (Sobreviventes é de 1972), isso é motivo do maior interesse. Até porque Sérgio Godinho, escritor de canções (nome dum espectáculo seu há uns anos) é, simultaneamente, músico e poeta excepcional. Peguei agora no livro, sem que tivesse lido os textos no Expresso, jornal de que estive afastado durante mais de vinte anos.
Este é um livro ao qual voltarei muitas vezes, neste ou noutro blogue, por isso não discorrerei sobre as canções escolhidas. Sem grandes surpresas, predomínio de duas constelações: a anglo-saxónica e a lusófona (16/16)
Da primeira, dos arredores do jazz (Aretha Franklin, Peggy Lee e Ray Charles), ao rock & roll de Elvis Presley; Dylan, Crosby, Stills, Nash & Young e Paul Simon são a marca de americana, a que podemos juntar os Doors. Três das grandes bandas britânicas de '60: Beatles, Rolling Stones e Kinks; e a natural presença do experimentador Robert Wyatt (ex-baterista dos Soft Machine). Não estava à espera dos Travelling Wilburys, ou sejam: Bob Dylan, George Harrison, Jeff Lyne, Roy Orbison e Tom Petty, mas faz todo o sentido... A isto juntem-se canções de três filmes: West Side Story, My Fair Lady  e Gold Diggers of 1933.
Em português: mais do que expectáveis: José Afonso, José Mário Branco, Amália Rodrigues, Caetano Veloso [este a bisar com Peninha], Chico Buarque, Milton Nascimento; vêm-se com naturalidade Fausto e Jorge Palma, João Gilberto ou Marisa Monte; Noel Rosa e Pixinguinha apontam para tempos primordiais da música do lado de lá que tanto se ouviu por cá; supreendem o Conjunto de António Mafra, Frei Hermano da Câmara e Tony de Matos, de resto muito bem defendidos
A música erudita tem representação indirecta: Kurt Weill e Henry Purcell, através de Lotte Lenya e Klaus Nomi, respectivamente. 
Por fim, mas not the least, Jacques Brel, Georges Brassens, Ana Karina & Serge Gainsbourg, Boris Vian, Paco Ibañez e Violeta Parra (a ordem não é esta, claro).
Uma palavra para o esplêndido trabalho editorial da Abysmo: é um livro que se aprecia como objecto, das ilustrações de Nuno Saraiva, ao design (Elisabete Gomes / SilvaDesigners), passando pelo próprio papel.   5*****  

Ficha
Autor: Sérgio Godinho
título: Caríssimas 40 Canções
subtítulo: Sérgio Godinho e as Canções dos Outros
edição: Abysmo
local: Lisboa
ano: 2012
págs.: 153
capa e ilustrações: Nuno Saraiva
impressão:  ACD-Artes Gráficas
tiragem: 1500


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

caserna

«Entrámos no covil e aquilo abarrotava de homens da guarda que até se fanicava, o cheirete metia-se nariz acima, de nem sabermos a quantas andávamos... A gente farejava de esguelha, tão forte e acre aquilo nos atingia... Ele era carne e mijo e dente podre e peido a tresandar que só visto, e à mistura um café triste e já arrefecido, e mais um gosto a caganitas e ainda por cima a qualquer coisa desagradável como rato morto em tudo quanto era sítio... De nos pôr os pulmões a bufar que nunca mais acabavam.»

Louis Ferdinand Céline, De Três em Pipa (1949)
tradução: Aníbal Fernandes

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

P&R - José-Augusto França

Alguns dos seus livros são sobre épocas em que viveu, e manteve o tom memorialista nessas obras. Foi importante escrever sobre um tempo a que assistiu?   Sim. Mas também é delicado falar sobre uma época que ainda está cheia de testemunhos. Escrevi isso quando fiz o livro sobre o Amadeo e ainda estavam vivos o Almada, o Diogo Macedo e o Eduardo Viana, que tinham sido amigos do Amadeo e me escondiam coisas.

Entrevista a Ana Soromenho, Expresso / Revista #2153, 1.II.2014

camilógrafos, camilómanos, camilófagos e "camelianistas"

«A confusão estabelecida pelos "entendidos" em camilografia, em geral simples camilómanos, acerca da obra de Camilo Castelo Branco "A Infanta Capelista" é de tal ordem que os não iniciados na vida desse escritor dificilmente encontram o fio da meada, propositadamente enredada pelos camilófagos e "camelianistas". Pertence ao número destes o pavão desasado, cuja plumagem é arrancada no artigo adiante reproduzido.»

Jaime Brasil, O Caso de "A Infanta Capelista" de Camilo Castelo Branco ou Como se Arrancam as Penas a um Empavonado "Camelianista", Porto, Livraria Galaica, 1958.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: A MARYLIN

Ela tinha um problema: queria ser como a Marylin, maravilhosa, mas tinha essa pecha chata (...cha-chata...) de ataques diários de pânico da morte súbita. Uma tia psi explicou-lhe que ela  fazia parte do grupo de pessoas que se apercebiam de que a morte podia ser iminente, vir sem aviso, daí a urgência de partir que sentia. Isso, ela  fazia com ele, passeando de automóvel, sem destino -- e este viajar sem destino, em que ela, como por milagre, se esquece da fobia quotidiana, aparece como um escapismo à sua vida insignificante, de que indirectamente nos apercebemos: da alusão às "arcas dos ultracongelados" do supermercado, passando  pelo modo basbaque como se refere "àquele sítio dos Templários", Tomar ("parece que há lá muitos mistérios"), até à pensão manhosa ("fica num bloco de apartamentos para habitação social"), onde acabam o dia -- e se acaba o texto --, sem que tivessem vislumbrado mistério nenhum e nenhum achaque paniquento houvesse dado cor à jornada desta pobre marylin.
Crónica ficcionada (no fundo, não o são todas as crónicas?...), lembrando, por vezes, as de Lobo Antunes, prosa directa e concisa, períodos curtos, jornalísticos, estilo trabalhado, um sentido de humor burlesco.

O incipit: «Ela era como a Marylin e só queria ser maravilhosa.»
um parágrafo: «E ela ia, ver se chovia. Enquanto ela ia e vinha -- podia até dar-se o caso de não voltar -- ela era maravilhosa e era isso que contava.»

Sarah Adamopoulos, A Vida Alcatifada, Lisboa, Fenda, 1997, pp. 11-14.



leituras de 2014 -- #6 O MENSAGEIRO



Rantanplan foi um criação genial do genial Morris, o contraponto em estupidez à inteligência de Jolly Jumper, o cavalo de Lucky Luke. O cão mais estúpido do que a própria sombra acabaria por autonomizar-se, sem que, naturalmente, a série ganhasse o sortilégio daquela de proveio (o mesmo se passou com o Marsupilami, doutro fora-de-série, André Franquin...).
Neste álbum de 1995, Rantanplan tem como missão farejar a pista de mais um evadido da penitenciária. Como de costume, o evadido será capturado poucas horas depois, sem intervenção do cão cuja incompetência levará os dois guardas que o acompanham a um forte de Cavalaria, originando mais um conflito com os índios...
Um bom álbum, lembrando, por vezes, o esplêndido O 20º. de Cavalaria, dos tempos dourados de Morris & Goscinny.

Ficha:
autores: Morris, M. Janvier, X. Fauche & J. Léturgie
título: O Mensageiro
título original: Le Messager
colecção: "Rantanplan" #9
editora: Edições Asa
local: Porto
ano: 2006
ano da ed. original: 1995
impressão: Grafiasa, Rio Tinto
págs.: 46

domingo, 2 de fevereiro de 2014

livros de 2014 -- #5 COMO A ÁGUA QUE CORRE




Um romance curto e dois contos esboçados nos primórdios da vida literária, e reescritos na década de 1980. Sempre com a grande erudição de Yourcenar, contudo, não deixa ofuscar a artista que ela é. Lembro-me muitas vezes, da Agustina a propósito; não quanto à quebra dos interditos sexuais, muito mais evidente por parte da belga, como, à partida, me parece mais natural.
«Anna, soror...», o primeiro conto, magnífico, sobre um delicado amor incestuoso, nunca consumado, entre irmão e irmã, passado na Itália espanhola dos sécs. XV-XVI, e na Flandres, então também do Habsburgos. Morto o irmão ainda jovem, ela alimenta esse amor ainda para além da morte, apesar do casamento imposto, da maternidade e da viuvez de Anna de La Cerna, depois soror...
«Um homem obscuro» que anda ao sabor da vida no século XVII, pela Inglaterra, o além-mar e, principalmente, as Províncias Unidas (Holanda). Natanael, filho dum operário holandês da construção naval, radicado no sul da Inglaterra, embarcado, náufrago, empregado numa encadernadora de um tio, em Amesterdão, amancebado com uma ladra e prostituta, Sarai, de quem tem um filho, empregado em casa de um burguês, com uma bela, melancólica e cultivada filha, a Senhora d'Ailly. A saúde débil faz com que o patrão o envie como guarda duma propriedade na costa duma ilha quase desabitada, onde resignadamente espera um regresso (a Senhora d'Ailly...), mas o estado deteriora-se e o desengano sobrevém, resignadamente, como a água que corre...
«Uma bela manhã» revela Lázaro, filho de Natanael e Sarai, órfã e a viver com a avó numa estalagem por onde passa, certo dia um troupe de actores a caminho das cortes da Escandinávia, onde as consorte inglesas apreciam assistir ao teatro do seu país. Fala-se num certo Shakespeare... Ao contrário dos textos anteriores, parece-me que Yourcenar não foi tão feliz aqui, tendo, talvez, fechado a narrativa quando ela teria mais para dar.   4****

Ficha:
autor: Marguerite Yourcenar
título: Como a Água que Corre (Comme l'Eau qui Coule)
tradução: Luiza Neto Jorge
colecção: "Biblioteca Visão -- Colecção Novis" #18
edição: Abril Controljornal Edipresse
local: Linda-a-Velha
ano: 2000
ano da ed. original: 1982
capa: Carlos Bravo
impressão: Printer, Barcelona
tiragem: 75000

do progresso

«Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas, importavam-se automóveis, construíam-se palacetes, rasgavam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se clubes, transformava-se Ilhéus. Mais lentamente, porém, evoluíam os costumes, os hábitos dos homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades.»

Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela (1958) 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

4 ou 5 págs.: LÁZARO

Terra Virgem (1882) é o primeiro livro em prosa de D'Annunzio, muito influenciado ainda pelo chamado verismo literário. O cenário decorre nos Abruzos, região da Itália central, na costa adriática, de onde o escritor era natural, e as figuras que perpassam pela maioria dos contos são seres rente ao chão, vadios, aleijados, raparigas inocentemente sensuais, rapazes largados à sua sorte, acabando por cansar um pouco o desfile de abortos e desgraçado atavismo. Mas há um enlevo para com a paisagem, que em parte condiciona os indivíduos, que acaba por redimir a obra.
O último conto, Lázaro sintetiza, no seu inefável horror, boa parte destes contos.

Incipit: «Estava de pé, em frente da barraca, meio embrutecido, amortalhado num fato de malha sujo, que se lhe rugava nas barrigas das pernas esqueléticas; fitava o campo lívido, taciturno, entristecido pelas poucas árvores despidas de folhagem, que se erguiam esguias por baixo dum dossel de nuvens pardacentas, humedecidas pela neblina.»

um parágrafo: «Do céu escurentado tombava uma chuva miúda, persistente, raivosa, que por toda a parte se infiltrava, encharcava até à medula, gelava o sangue.»

Gabriele D'Annunzio, Terra Virgem (Terra Vergine, 1882), tradução de M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955, pp. 185-186.