domingo, 30 de março de 2014

leituras de 2014 - #16 O HIPOCONDRÍACO


Rogério é um industrial retirado, a quem foi diagnosticado um problema prostático, normal nos seus 59 anos, mas cuja comunicação ele interpretou como mentira piedosa do médico, que pretendera assim ocultar-lhe a natureza cancerosa da doença.
A vida deixara de ter sentido, após a morte da mãe, a quem se dedicara depois do divórcio da mulher -- a quem surpreendera numa prática sexual ultra-desviante -- e ao posterior corte de relações com a filha. Restava-lhe apenas uma amizade quase colorida com concunhada, , também ela divorciada, mas insuficiente para o preencher, já que ela prometia mais do que realmente dava.
Embora não tenha dado o tempo por perdido, longe disso, o conto lembrou-me muito certas narrativas dos anos vinte, publicadas em revistas de grande público, com um psicologismo de manual, mais destinados a provocar um certo frisson ao público burguês a que se destinavam. Uma espécie de sucedâneo das história de cordel vendidas nas feiras. Aqui, estórias de faca e alguidar, violência crua; ao invés, para os lares respeitáveis da burguesia, ambientes estranhos, atmosferas voluptuosas, peripécias erráticas de colarinho branco, baixa moralidade.
Quanto ao estilo, o de de Luís Cajão é correcto, mas não mais; e eu em literatura estou sempre à espera desse mais.
Conto publicado como "brinde de Natal". Boas práticas editoriais...  3***

Ficha:
Autor: Luís Cajão
título: O Hipocondríaco
editota: Editorial Escritor
local: Lisboa
ano: 1997
págs.: 31
impressão: Gráfica 2000
capa: ilustração de Miguel Horta

sábado, 29 de março de 2014

4 ou 5 págs. - VILA D'ARCOS

Breve texto de 1972. Uma vila de província, uma dessas terras fora do tempo e do mundo. Ruas com pouco movimento, casas antigas -- em Sophia "nobres mesmo quando pobres" --, mulheres de negro, vultos à janela, pessoas poucas, automóveis ainda menos. E verde, muito verde, também dos "jardins imprevistos", "docemente abandonados a uma solidão dançada pelas brisas, enquanto um longo sussurro de adeus acena de folha em folha nos ramos mais altos das árvores." Jardins que albergam o sonambulismo da vida, mesmo quando o sono de existir é perturbado por "aparições prodigiosas como o lírio, a águia e o inesquecível rosto amado com paixão"; jardins onde se encara o próprio mistério da existência.

O incipit: Vila d'Arcos fica ao Norte, um pouco para Leste, numa região de montanhas.»
Um parágrafo: «É uma cidade antiga onde estagnada se desagrega e se dissolve lentamente uma vida desvivida gesto por gesto, sílaba por sílaba.»


1972

Sophia de Mello Breyner Andresen, Histórias da Terra e do Mar, Lisboa, Edições Salamandra, 1984, pp.113-117.

quarta-feira, 26 de março de 2014

leituras de 2014 - #15 TITEUF

De idade indefinida, à volta dos 8/9 anos, Titeuf é um miúdo vivaço e inconveniente; um reguila, em suma, misto do Calvin de Bill Watterson e do Pequeno Spirou, de Tome & Janry -- sem a poesia do primeiro ou a finura do segundo. Divertido, sem dúvida, mas, pelo menos nestes dois álbuns, falta o golpe de asa que caracteriza aqueles.

Ficha
Autor: Zep
título: Titeuf -- As Miúdas Ficam Banzadas / N'É Nada Justo
títulos originais: Ça Épate les Filles / C'Est Pô Juste
apresentação: Carlos Pessoa
tradução: Paula Caetano
colecção: «Grande Autores de Banda Desenhada» #2
editores: Edições Asa / Público
local: Porto
ano: 2008
impressão: Soctip
págs.: 96

segunda-feira, 24 de março de 2014

4 ou 5 págs.: O SEGREDO

Uma recordação de infância de Castelao, autor-narrador deste retalho (retrinco), escrito em Santiago de Compostela, em 1909. O pai manda-o chamar, com a mãe, para o pé de si, emigrado galego estabelecido na pampa argentina, e ambos estranham aquele lugar inóspito, quase terra de ninguém, onde funciona o seu entreposto comercial: uma espécie de centro do mundo (daquele mundo), atraindo quantos por lá passam, incluindo os indesejáveis.
Quando, certa noite, um gaucho ricamente ataviado chega ao estabelecimento que era também morada, cães ladrando e cavalos relinchando nervosamente, dá-se um drama inesperado, o da morte desse estranho, caindo redondo mal franqueara a porta. Acodem os homens da casa, depondo o cadáver sobre uma mesa de bilhar. O pai, de saída para contacatar as autoridades, recomenda ao pequeno que guarde segredo, que a mãe não podia saber de nada -- pesada exigência para uma criança que acabara de viver um episódio inusitado. O resto da noite foi de terror, até o pai perguntar se ele queria dormir na cama com os progenitores. No quarto, a mãe, apercebendo-se de luzes e movimento inabitual, interroga o marido que, disfarçadamente, mofa da mulher.
O segredo, nessa noite, pesou à criança como chumbo. Mas enquanto viveram naquele sertão, revelou o narrador-autor, a mãe nunca soube nem teve a evidência de que se alguém ali morresse, ali ficaria, "soterrado com un can."

O incipit: «Tiña eu once anos cando meu pai, que estaba na Arxentina, nos chamou cabo de si; e alá fomos embarcados, a miña nai e mais eu, nun paquete alemán.»

Um parágrafo: «Eu doíame de durmir enriba do mostrador, em compaña do outro dependente. Miña nai, a probe, choraba de verse antre xentes sen relixión. E os dous, feridos de saudade, botábamos de menos a probeza limpa dos meus avós, que xá se tornara azul diante da moura fartura do presente; e no filo en que os nosos ollos se avistaban, desbalsábanse en bágoas.»

Alfonso R. Castelao, Retrincos / un Ollo de Vidro, edição de Manuel Rosales, 2.ª ed., Vigo, Editorial Galaxia, 2002, pp. 49-56.


sexta-feira, 21 de março de 2014

leituras de 2014 - #14 A EMBRIAGUEZ DA METAMORFOSE



     Um póstumo de Zweig, livro negro, como negra foi a fase final da sua vida. Judeu austríaco autoexilado em 1934 (Adolfo, o Hitler, conquistara o poder na vizinha Alemanha no ano anterior...), empreendeu um calvário inimaginável para quem não o viveu. Não que tivesse problemas materiais; mas Zweig era uma figura da cultura europeia, um escritor celebrado e cosmopolita, e ver-se impedido de regressar, posto na condição de apátrida (naturalizou-se inglês, mais tarde) era uma degradação que abalaria qualuqer espírito requintado. O duplo suicídio de Petrópolis será um desenlace lógico para esse desespero.
     Escrito em dois momentos bem distintos (1930 e c. 1938) -- e publicado apenas em 1982 -- A Embriaguez da Metamorfose conta-nos a história de Christine, uma modesta funcionária dos correios austríacos, vivendo na província no pós-I Guerra, no rescaldo da derrota e desmembramento do Império Austro-Húngaro. A convite de uns tios ricos, há longos anos emigrados nos Estados Unidos, onde fizeram fortuna, passou uma curta temporada de nove dias numa estância de luxo suíça.
     Os vestidos caros, o arranjo de beleza que a tia lhe proporciona, realçaram o seu aspecto exterior, tornando-a alvo da atenção da beautiful people em vilegiatura. Ao fim da primeira noite, Christine já era tu-cá-tu-lá com todos os espécimes da alta sociedade que pululavam no hotel, num mimetismo irreal que demora mais de uma semana a ser desvelado -- para mim o maior senão: Zweig força à corência do tempo narrativo uma metamorfose súbita de insustentável verosimilhança. Quando cai em si, quando fazem com que caia em si, Christine abandona abruptamente a estância, foge -- pois que a própria tia, temerosa que viesse à tona um duvidoso passado vienense, se mostra desconfortável --, regressando à vida de funcionária dos correios na província austríaca, depois de ter provado o mel dum mundo de aparente facilidade e prazer.
     É quando conhece Ferdinand, em casa da irmã em Viena, que a sua vida mudará, no sentido da libertação. Ferdinand é um despojo de guerra, em todos os sentidos, combatente e posteriormente prisioneiro dos russos, semi-inutilizado para o trabalho, devido a um ferimento que lhe incapacitou um mão, desprovido do património fundiário familiar com o rearranjo das fronteiras europeias, que criou estados onde antes havia impérios, é um inadaptado que sacrificou a flor da juventude aos caprichos do estado imperial áustro-húngaro, carne para canhão jogada fora quando deixou de ser precisa.
     A libertação de ambos da vida de pobreza mesquinha e sem sentido que levam só poderá fazer-se de duas maneiras: pela marginalidade, pelo suicídio. A mestria de Stefan Zweig revela-se aqui eloquentemente, e Christine e Ferdinad são dois inesquecíveis pares trágicos da história da literatura (a cena do bordel é antológica).
     Análise de uma frustração, recusa da insignificância, A Embriaguez da Metamorfose é, repetindo-me, um livro amargo; mas livro de mestre. 4****

Ficha
Autor: Stefan Zweig
título: A Embriaguez da Metamorfose
título original: Rausch der Verwandlung
tradução: Fernanda Barão: 
colecção: Biblioteca de Bolso Dom Quixote #4
editora: Publicações Dom Quixote
local: Lisboa
ano: 1986
capa: Fernando Felgueiras
impressão: Grafilis
págs.: 159


quarta-feira, 19 de março de 2014

livros que me apetecem

dos livros referidos pelo JL de hoje, os que mais me apetecem:

Categorias e Outras Paisagens, de Fernando Echevarría (Afrontamento)
Correspondência (Adenda), de Eça de Queirós, edição de A. Campos Matos (Parceria A. M. Pereira)
EIA - Evidências, Inscrições Aforismos, de Cristino Cortes (Sempre-em-Pé)
Pastor de Pedras, de Manuel da Silva-Terra (Licorne)
Tudo São Histórias de Amor, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China) 
Zacarias Escarcela e Outros Contos, de Aleksandr Soljenítsin (Sextante)










P&R - Dulce Maria Cardoso

Escrever é uma forma de tomar posição?   Viver é tomar posição. Escrever ainda mais. Como qualquer proposta artística.

Entrevista a Luís Ricardo Duarte, JL #1134, 19.III.2014.

terça-feira, 18 de março de 2014

o medieval numa penada

«A Europa vive então* em plena Idade Média: os países são monarquias, as economias são agrárias, as sociedades são feudais,, as mentalidades são religiosas, o poder espiritual pertence à Igreja Católica, o chefe da cristandade é o Papa.»

Diogo Freitas do Amaral, D. Afonso Henriques (2000)

*(1109) 

segunda-feira, 17 de março de 2014

a arte a revelar-se por toda a parte

«Flores das mais odorantes em gigantescos jarrões de esmaltada porcelana; a arte a revelar-se por toda a parte, na moldura dos espelhos, nos painéis, nos tectos dourados; emanações balsâmicas a exalarem-se por esses recintos encantados; ao longe, uma música voluptuosa, não sei de que maestro inspirado; e, sobressaindo a tudo, pares animados de muita vida e muito amor, abandonando-se à efervescência das danças, correndo agora numa iriada mistura de cores, para ligeiros se separarem logo debaixo dos olhos curiosos dos que se contentam em ver, esteiados com certo ar estudado ao mármore das colunatas, ou recostados nas voluptuosas otomanas.»

Álvaro do Carvalhal, Os Canibais (1868)

sábado, 15 de março de 2014

Se tivesse de recomeçar a vida...

«Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra.»

Raul Brandão, Memórias, vol. I (1919)

sexta-feira, 14 de março de 2014

não do frio do vento, não do frio da chuva

«Aquela era uma noite diferente e angustiante. Sim, porque os homens tinham um ar de desassossego e o marinheiro que bebia solitário no Farol das Estrelas correu para o seu navio como se o fosse salvar de um desastre irremediável. E a mulher, que no pequeno cais do mercado esperava o saveiro onde vinha o seu amor, começou a tremer, não do frio do vento, não do frio da chuva, mas de um frio que vinha do coração amante cheio de maus presságios da noite que se estendia repentinamente.»

Jorge Amado, Mar Morto (1936).

quarta-feira, 12 de março de 2014

4 ou 5 págs.: RETRATO DE MÓNICA

Retrato desapiedado duma mulher fútil que vive, não para os outros, mas que se alimenta dos outros, do que consegue extrair dos outros em benefício próprio, o que é muito pouco cristão -- ou nada cristão. A história integra os Contos Exemplares (1962), a primeira incursão de Sophia na ficção adulta, prefaciada pelo célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e está impregnada de ética cristã, de catolicismo social e inconformista.
Para Mónica, tudo está bem como está, cada coisa no seu lugar -- e ela voga no status quo, serve-se dele para brilhar, para ofuscar na sociedade de ouro falso dos interesses, das convenções, dos negócios. E, por isso, tudo (lhe) serve: do casamento (espécie de sociedade) à caridade, que lhe amplifica a bondade, passando pela cumplicidade com o "Príncipe deste Mundo", numa nada velada alusão a Salazar, "um homem austero e casto".

O incipit: «Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultâneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, daitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.»

Um parágrafo: «É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, 3.ª edição, Lisboa, Portugália, 1970, pp. 113-120.

segunda-feira, 10 de março de 2014

a "loucura das metáforas"

«É cómodo falar-se do Organismo Social como cómodo é falar-se do Leão Britânico, mas a Grã-Bretanha é tanto organismo como leão. Desde o momento em que começamos a dar a uma nação a unidade e a simplicidade de um animal, começamos também a pensar selvàticamente.»

G. K. Chesterton, Disparates do Mundo (1910)
tradução: José Blanc de Portugal

domingo, 9 de março de 2014

leituras de 2014 - #13 O AMOR NOS TEMPOS DE CÓLERA


Regresso aO Amor nos Tempos de Cólera, de Gabriel García Márquez, quase um quarto de século após a primeira leitura. Não só nada se perdeu do encanto desta história de amores contrariados, penados e gloriosamente recuperados, como o cabedal de leitura entretanto granjeado e a vivência decorrida desde essa época de jovem adulto me deram, à uma, a faculdade de reconhecer a mestria literária quando a tenho diante dos olhos, essa mestria que já então me deslumbrara -- um deslumbramento talvez ingénuo e pouco contaminado -- quando lera este e mais livros do Gabo; e à outra, a noção clara e firme de que este romance encerra uma das grandes personagens femininas da literatura universal, Fermina Daza. Por isso, louvada seja a Literatura!   5*****

ficha

Autor: Gabriel García Márquez
título: O Amor nos Tempos de Cólera 
título e ano da edição original: El Amor en los Tiempos del Cólera (1985)
tradução: Margarida Santiago
colecção: «Ficção Universal» #26
editora: Publicações Dom Quixote
local: Lisboa
ano: 1987
edição: 2.ª
capa: Fernando Felgueiras
impressão: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos
págs.: 371

sexta-feira, 7 de março de 2014

leitura de 2014 - #12 JORNADA CULTURA E TURISMO


Se, como prática, o Turismo não é coisa que me entusiasme, a verdade é que a sua importância económica e as evidentes interacções com a Cultura são inegáveis, o que (me) aconselha a um olhar menos snobe e preguiçoso. (Até porque sou perfeitamente capaz de me meter num comboio (evito o avião...) para visitar uma retrospectiva do Goya no Prado; ou, tivesse outro à-vontade dentro dum Airbus, sobrevoar a Mancha para ver vikings em Londres... -- o que talvez faça de mim um turista, afinal.)
Vem isto a propósito da leitura das comunicações deste livrinho, jornada realizada em 2012, em Cascais (concelho berço do moderno Turismo em Portugal, a partir do Estoril). Da intervenção mais política e prospectiva de Carlos Carreiras, actual presidente da Câmara, alicerçada num efectivo trabalho no terreno  (e aqui testemunho-o como munícipe); passando pelo ponto de situação de certo modo desencantado de Vasco Pinto Leite («O estado da Cultura em Portugal»), a abordagem crítica e metodológica de Maximiano Gonçalves («A comunicação do objecto cultural») e o balanço do derradeiro presidente da entretanto extinta (!) Junta de Turismo da Costa do Estoril, Duarte Nobre Guedes.
Fecha Licínio Cunha, antigo secretário de Estado do Turismo e ex-presidente da referida Junta, com um bom ensaio de problematização deste binómio Cultura-Turismo, também nas suas evidentes implicações económicas (dinamização de que o país precisa como de pão para a boca) e cívicas, pois, se nos especializamos em acolher, temos de tratar da casa, o que, no campo cultural, implica não deixar o património ao abandono, como demasiadas vezes sucede.   3***

ficha
autores: vários
título: Jornada Cultura e Turismo -- Comunicações
editora: Fundação D. Luís I
local: Cascais
ano: s.d.
págs.: 42

quinta-feira, 6 de março de 2014

um maravilhoso tempo estival

«Fazia um maravilhoso tempo estival na semana que lá* passei. As lojas arvoravam decorações de Natal. O mausoléu a Perón, em Olivos, acabava de ser inaugurado; Evita** estava em forma após a sua excursão punitiva aos cofres dos bancos europeus. Certos católicos tinham dito uma missa de requiem pela alma de Hitler e aguardava-se um golpe militar.»

Bruce Chatwin, na Patagónia (1977)
tradução: José Luís Luna

*Buenos Aires
** sic

livros que me apetecem

´De que fala o último JL:

Contra Todas as Evidências, de Manuel Gusmão (Avante!)
O Fim do Império -- Memória de um Soldado Português -- O 7 de Setembro de 1974 em Lourenço Marques, de Ribeiro Cardoso (Caminho)
O Jardim das Coisas Invisíveis, de Qais Akbar Omar (Presença)
Reflexos na Desordem das Coisas, de Rosário Ferreira Alves (Poética)
O Tímido e as Mulheres, de Pepetela (Dom Quixote)


4 ou 5 págs.: DISCURSO NA UNIVERSIDADE DE BARI

Publicado à laia de antelóquio ao elogio de Giovanni Ricciardi, (propositadamente para o colóquio em  Portugal do centenário do autor brasileiro, em 2012) Jorge Amado agradece a distinção que a Universidade de bari lhe prestou, em 1990, não para si, mas para o povo brasileiro, o húmus de que brotou a sua obra romanesca. Curta alocução em que o criador de Gabriela, Cravo e Canela se reivindica como escritor com causas, combatendo tudo o que ofende a dignidade humana, muito em especial o racismo, abjecção que não podia ser mais desconforme a um certo ethos idealmente brasileiro, fundado na cultura mestiça, "essa nossa contribuição para humanismo universal." E fá-lo simultaneamente com o brio e a descontracção de quem sabe que a obra que assinou constitui um legado que só tem de prestar contas ao Tempo.

O incipit: «Aqui estou, nesta tribuna ilustre, cumulado de honra -- a alta honra de receber o título de Doutor Honoris Causa de vossa Universidade de Bari.»

Um parágrafo: «Sobre mim e minha obra literária muito se escreveu, de bem e de mal. Disseram certos críticos que não passo de um limitado romancista de putas e de vagabundos. Creio que é verdade e orgulho-me de ser o porta-voz dos mais despossuídos de todos os despossuídos. Disseram também que tenho a paixão da mestiçagem, e dizem-no com raiva racista. Honro-me infinitamente de ser um romancista da nação mulata do Brasil. Creio que, querendo ofender-me, esses críticos me exaltaram e definiram.»

Doutoramento Honoris Causa de Jorge Amado em Línguas e Literaturas Estrangeiras na Universidade de bari (Itália - 1990), s.l., Colóquio Internacional 100 Anos de Jorge Amado, 2012, pp. 1-4.

domingo, 2 de março de 2014

com os olhos espichados em direcção à cidade

imagem
«Porém de noite não havia brinquedo que o arrancasse da contemplação das luzes que se acendiam na cidade tão próxima e tão longínqua. Se sentava naquele mesmo barranco à hora do crepúsculo e esperava com ansiedade de amante que as luzes se acendessem. Tinha uma volúpia aquela espera, parecia um homem esperando a fêmea. Antônio Balduíno ficava com os olhos espichados em direção à cidade, esperando. Seu coração batia com mais força enquanto a escuridão da noite invadia o casario, cobria as ruas, a ladeira, e fazia subir da cidade um rumor estranho de gente que se recolhe ao lar, de homens que comentam os negócios do dia e o crime da noite passada.»
Jorge Amado, Jubiabá [1935]

(sábia)

«a mão passava (sábia) pelos quadris e detinha-se no interior das coxas. Ela retorcia-se de gozo. Noite após noite tinha as carícias dele e não sabia se queria manter-se acordada para que o sono lhas não proporcionasse. "Do it, Sam!"»

Filomena Cabral, Um Homem de Sonho -- Play It, Sam! (1986)

sábado, 1 de março de 2014

4 ou 5 págs.: A COMUNIDADE NACIONAL

Primeiro de 24 quadros do quotidiano alemão sob domínio nazi, nos anos pré-guerra. Na noite de 30 de Janeiro de 1933, dois oficiais ss, embriagados, festejam a vitória de Hitler, aquele que vai proceder ao renascimento do povo alemão. Perdem-se no caminho, entrando num bairro suspeito, provavelmente desafecto.; em tempos haviam surpreendido num sítio daqueles "um ninho de marxistas". Temerosos, ouvem um ruído. Abre-se uma janela, um velho em pijama pergunta em voz baixa "És tu, Ema?"... Panicam os ss, desatam aos tiros, e de súbito um grito de alguém atingido por uma bala, irrompe na noite.

duas falas:
«O PRIMEIRO - Numa destas esquinas caçámos um ninho de marxistas. E os tipos depois a dizerem que eram uma associação católica. Mentiras! Nenhum deles tinha colarinho branco!
O SEGUNDO - Achas que ele vai conseguir pôr de pé a grande comunidade nacional?»

Bertolt Brecht, O Terror e a Miséria n o Terceiro Reich [1938], tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa, Portugália Editora, s.d., pp. 9-11.