quarta-feira, 12 de março de 2014

4 ou 5 págs.: RETRATO DE MÓNICA

Retrato desapiedado duma mulher fútil que vive, não para os outros, mas que se alimenta dos outros, do que consegue extrair dos outros em benefício próprio, o que é muito pouco cristão -- ou nada cristão. A história integra os Contos Exemplares (1962), a primeira incursão de Sophia na ficção adulta, prefaciada pelo célebre bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e está impregnada de ética cristã, de catolicismo social e inconformista.
Para Mónica, tudo está bem como está, cada coisa no seu lugar -- e ela voga no status quo, serve-se dele para brilhar, para ofuscar na sociedade de ouro falso dos interesses, das convenções, dos negócios. E, por isso, tudo (lhe) serve: do casamento (espécie de sociedade) à caridade, que lhe amplifica a bondade, passando pela cumplicidade com o "Príncipe deste Mundo", numa nada velada alusão a Salazar, "um homem austero e casto".

O incipit: «Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultâneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres Inúteis", ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, daitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.»

Um parágrafo: «É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, Contos Exemplares, 3.ª edição, Lisboa, Portugália, 1970, pp. 113-120.

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