segunda-feira, 24 de março de 2014

4 ou 5 págs.: O SEGREDO

Uma recordação de infância de Castelao, autor-narrador deste retalho (retrinco), escrito em Santiago de Compostela, em 1909. O pai manda-o chamar, com a mãe, para o pé de si, emigrado galego estabelecido na pampa argentina, e ambos estranham aquele lugar inóspito, quase terra de ninguém, onde funciona o seu entreposto comercial: uma espécie de centro do mundo (daquele mundo), atraindo quantos por lá passam, incluindo os indesejáveis.
Quando, certa noite, um gaucho ricamente ataviado chega ao estabelecimento que era também morada, cães ladrando e cavalos relinchando nervosamente, dá-se um drama inesperado, o da morte desse estranho, caindo redondo mal franqueara a porta. Acodem os homens da casa, depondo o cadáver sobre uma mesa de bilhar. O pai, de saída para contacatar as autoridades, recomenda ao pequeno que guarde segredo, que a mãe não podia saber de nada -- pesada exigência para uma criança que acabara de viver um episódio inusitado. O resto da noite foi de terror, até o pai perguntar se ele queria dormir na cama com os progenitores. No quarto, a mãe, apercebendo-se de luzes e movimento inabitual, interroga o marido que, disfarçadamente, mofa da mulher.
O segredo, nessa noite, pesou à criança como chumbo. Mas enquanto viveram naquele sertão, revelou o narrador-autor, a mãe nunca soube nem teve a evidência de que se alguém ali morresse, ali ficaria, "soterrado com un can."

O incipit: «Tiña eu once anos cando meu pai, que estaba na Arxentina, nos chamou cabo de si; e alá fomos embarcados, a miña nai e mais eu, nun paquete alemán.»

Um parágrafo: «Eu doíame de durmir enriba do mostrador, em compaña do outro dependente. Miña nai, a probe, choraba de verse antre xentes sen relixión. E os dous, feridos de saudade, botábamos de menos a probeza limpa dos meus avós, que xá se tornara azul diante da moura fartura do presente; e no filo en que os nosos ollos se avistaban, desbalsábanse en bágoas.»

Alfonso R. Castelao, Retrincos / un Ollo de Vidro, edição de Manuel Rosales, 2.ª ed., Vigo, Editorial Galaxia, 2002, pp. 49-56.


Sem comentários:

Enviar um comentário