segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Sábado, 8 de Dezembro de 1945.

Sábado, 8 de Dezembro de 1945. Quando me acontece interrogar-me sobre o pouco tempo que nos é dado para viver e nos saciarmos de experiências que valham a pena ser vividas, a inumerável multidão das pequenas dificuldades e das pequenas satisfações que constituem a trama da vida perde-se numa espécie de longe cinzento e indistinto, e as próprias ideias de felicidade e de desgraça afiguram-se igualmente fúteis.

início de Os Olhos de Ezequiel Estão Abertos (1949), de Raymond Abellio, trad. Rafael Gomes Filipe, 2.ª ed., Lisboa, Ulisseia, 2010.

domingo, 30 de dezembro de 2012

LÁZARO

Estava de pé, em frente da barraca, meio embrutecido, amortalhado num fato de malha sujo, que se lhe rugava nas barrigas das pernas esqueléticas; fitava o campo lívido, taciturno, entristecido pelas poucas árvores despidas de folhagem, que se erguiam esguias por baixo dum dossel de nuvens pardacentas, humedecidas pela neblina. Fitava o campo lívido e o clarão sinistro da fome incendiava-lhe o negrume dos olhos. A barraca, coberta de lona encharcada pela chuva, assemelhava-se na penumbra a enorme animal, todo ossos e pele flácida.
Passaram um dia sem comer; os últimos bocados de pão havia-os devorado naquela manhã o filho, esse pequeno monstro humano, de crânio calvo e separado como esférica abóbora. Ele, porém, o mísero, tinha o ventre mais vazio do que o tambor no qual rufava, para atrair os curiosos e exibir o horrível fenómeno a troco dalguns cobres. Não se enxergava, porém, alma viva e a criança jazia dentro da barraca, deitada num montão de velhos farrapos, as pernas contorcidas, o busto deformado, matraqueando os dentes num acesso de febre, enquanto o rufar das baquetas na pele do tambor lhe produzia espasmos dolorosos nos temporais.
Do céu escurentado tombava uma chuva miudinha, persistente, raivosa, que, por toda a parte se infiltrava, encharcava até à medula, gelava o sangue.
O rufar do tambor perdia-se sem eco na tristeza do crepúsculo outona; e Lázaro rufava, rufava de pé, lívido, triste, cravando o olhar angustiado na sombra como para descortinar nela algo que devorasse, apurando o ouvido a cada momento na ânsia de ouvir as vaias de alguns borrachos que se aproximassem. Por duas ou três vezes se voltou para examinar o ignóbil farrapo de carne viva, que arquejava estendido por terra, e, de todas, os olhos do mísero fixavam outros onde se lia a suprema dor.
Não se avistava vivalma. A sombra dum cão surgiu duma viela negra, passou com rapidez em frente de Lázaro, cauda entre as pernas, e parou por detrás da barraca para esburgar um osso encontrado Deus sabe onde. O tambor calava-se; rajadas de vento faziam turbilhonar folhas secas arrancadas dos galhos das carvalheiras. Pairou seguidamente pávido silêncio, silêncio apenas quebrado de vez em quando pelo rosnar do cão, o surdo rumor das cordas de água fustigando a lona branca e o estertor da criança -- um estertor que parecia sair duma garganta mutilada.

Gabriele d'Annunzio, Terra Virgem, trad., M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Há ouro, Wayne



-- Há ouro, Wayne, ouro em pó em toda a parte! Acorda! As ruas da América são pavimentadas de ouro!

início de  Olá, América! (1981) de J. G. Ballard, trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Lisboa Editorial Caminho, 1989.
colecção: «Caminho / Ficção Científica» #83.

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antigas. À bofetada, ao murro e quando eu estava caído no chão ao pontapé.
     Ninguém me defendeu. Ali ninguém defendia ninguém. Cada um que se amanhasse. Lá me amanhei o melhor que pude na enfermaria e consegui, por um aluno externo, mandar um bilhete ao meu pai a narrar-lhe o sucedido e preveni-lo de que se me não tirasse dali imediatamente nunca mais estudaria uma linha. O meu pai entendeu e foi buscar-me.

Um incêndio que deixou muitas marcas

     Nem só a clausura, a prepotência, a incompreensão fizeram desses anos de colégio interno uma recordação amarga. A família ou os farrapos que dela iam ficando mudou-se para

Alexandre Babo, Recordações de um Caminheiro, Lisboa, Editorial Escritor, 1993, p. 25, ls. 1-12. 

foto daqui

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

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Smith tinha também desempenhado um papel de certa importância nos anos de guerra, percorrendo as águas da Europa como almirante da armada britânica. Tinha rabos de palha quando tomara o comando dos navios de Nelson no Mediterrâneo Oriental, mas depois deu provas no bombardeamento do Acre (1799), durante a malfadada incursão de Napoleão no Médio Oriente.
     Quando Smith e Junot começaram a mobilização contra Portugal, a guerra na Europa tinha chegado a um ponto crítico. Julgando pelas aparências, a cruzada de Napoleão estava no seu auge. Depois da expansão inicial para a Holanda, a Suíça e o Norte da Itália, os finais de 1805 tinham assistido a

Patrick Wilcken, Império à Deriva -- A Corte Portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821, 9.ª ed., Porto, Civilização Editora, 2007, p. 25, ls. 1-12.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A PRINCESA E A ERVILHA

Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa -- mas tinha de ser uma princesa verdadeira. Por isso, foi viajar pelo mundo fora para encontrar uma, mas havia sempre qualquer coisa que não estava certa. Viu muitas princesas, mas nunca tinha a certeza de serem genuínas; havia sempre qualquer coisa, isto ou aquilo, que não parecia estar como devia ser. Por fim, regressou a casa, muito abatido, porque queria uma princesa verdadeira.
Uma noite houve uma terrível tempestade; os trovões ribombavam, os raios rasgavam o céu e a chuva caía em torrentes -- era apavorante. No meio disso tudo, alguém bateu à porta e o velho rei foi abrir.
Deparou com uma princesa. Mas, meu Deus!, o estado em que ela estava! A água escorria-lhe pelos cabelos e pela roupa e saía pelas biqueiras e pela parte de trás dos sapatos. No entanto, ela afirmou que era uma princesa de verdade.
-- Bem, já vamos ver isso -- pensou a velha rainha.
Não disse uma palavra, mas foi ao quarto de hóspedes, desmanchou a cama toda e pôs uma pequena ervilha no colchão. Depois empilhou mais vinte colchões e vinte cobertores por cima. A princesa iria dormir nessa cama.
De manhã perguntaram-lhe se tinha dormido bem.
--Oh, pessimamente! Não preguei olho em toda a noite! Só Deus sabe o que havia na cama, mas senti uma coisa dura que me encheu de nódoas negras. Foi horrível.
Então ficaram com a certeza de terem encontrado uma princesa verdadeira, pois ela tinha sentido a ervilha através de vinte edredões e vinte colchões. Só uma princesa verdadeira podia ser tão sensível.
Então o príncipe casou com ela; não precisava de procurar mais. A ervilha foi para o museu; podem ir lá vê-la, se é que ninguém a tirou.
Aqui têm uma bela história!

Hans Christian Andersen, Contos de Fadas, trad. Ribeiro da Fonseca, Lisboa, Círculo de Leitores, 1989.
Colecção: «Tesouros da Literatura Juvenil».

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

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crinas, atirando ao vento gargalhadas sonoras, brados selvagens, deixando flutuar os cabelos esparsos. Os amuletos e os discos refulgentes titlintavam e uma das pomas, de bico nacarado, saltara-lhe fora do corpete com a violência dum gerânio desabrochado. E ria, e ria, e sobre esta luta do poldro e da rude vagabunda, o Sol dardejava as primeiras frechas de oiro.
     -- Bate-lhe com uma vara, Ziza! -- gritou a amazona ofegante.
     O animal, vergastado, despediu em louca correria pela estrada branca, levantando nuvens de

Gabriele d'Annunzio, Terra Virgem, trad. M. L., Lisboa, Editorial Minerva, 1955, p. 25, ls. 1-12.

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Dito isto, a África romana resiste melhor e durante mais tempo à pressão árabe do que tinha feito perante a invasão vândala. As primeiras incursões dão-se a partir de 647 no Sul da Mauritânia tingitana. Mas os novos invasores não podem conquistar as fortalezas que protegem o limes. A África conhece, deste modo, uma trégua até 670 (fundação de Kairouan). A ofensiva maciça inicia-se em 688. Aos Árabes, que conquistam e perdem Cartago em 698, antes de a tomarem definitivamente em 702, são necessários cinco anos de combate para que a África deixe de ser romana. Além da frota  e das fortalezas bizantinas, um elemento

Michel BanniardA Alta Idade Média Ocidental, trad. de M. de Campos, Mem Martins, Publicações Europa-América, s.d.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

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nervo, E as costuras são como os nervos das velas, pensou a mulher de limpeza, contente por estar a aprender tão depressa a arte de marinharia. Achou esgarçadas algumas bainhas, mas contentou-se com assinalá-las, uma vez que para este trabalho não podiam servir a linha e a agulha com que passajava as peúgas dos pajens antigamente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paióis, viu logo que estavam vazios. Que o da pólvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que primeiro mais lhe pareceram caganitas de rato, não lhe importou nada, de facto

José SaramagoO Conto da Ilha Desconhecida (1998), 2.ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 2005, p. 25, ls. 1-12.

(foto)

Oliveira Martins escreve a Luciano Cordeiro [1888]

Meu querido Luciano

Vibrei certamente, vibrei todo o dia hontem, lendo a sua primorosa obra. V. fez um milagre. Não queria escrever-lhe agradecendo-lhe o seu livro, antes de o ler, e não o li logo porque o tinha emprestado ao Moniz Barreto para elle escrever o artigo que lhe pedi e V. já leu, de certo.
O Reporter cumpriu o seu dever.
O livro das Cartas que V. fez é verdeiramente definitivo; não há mais nada a dizer.
V. esgotou a erudição e a crítica: não ha que rebuscar nem que observar mais.
Está definido o caso pathologico (?) e determinado o concurso de circumstancias que se deu.
Receba pois V., meu querido Luciano, os meus mais cordeaes parabens e creia-me sempre -- Seu velho amigo, de uma amisade sempre moça.


in Soror Mariana Alcoforado -- Cartas de Amor ao Cavalheiro de Chamilly, Porto, Editora Ausência, 2002.

domingo, 23 de dezembro de 2012

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nome de fazer ou criar, se presta a equívoco!).
     Ontològicamente não é a verdade que é do homem: é o Homem que é da Verdade. Nem mesmo o pensador se pode pôr frente ao Ser, pois que ele próprio, o homem, está dentro do Ser. Estranhar-se ao Existente é já pôr a coisa-em-si como algo de estranho e tão longe do homem que este jamais o atingirá (estranhar-se ônticamente, queremos dizer, não metodològicamente. O lógico vem depois do ontológico, na

D. António Ferreira Gomes, «Pórtico» de Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen (1962), 3.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, 1970, p. XXV, ls. 1-12. 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

"A MORTE E A MORTE DE QUINCAS BERRO D'ÁGUA"

Em dois tentos simples, Jorge Amado acaba de escrever o que para mim é o melhor romance e a melhor novela da literatura brasileira: Gabriela, Cravo e Canela e A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água, publicada, esta, no número de junho da revista Senhor. Para tirar teima, ainda andei pegando êsses últimos dias Dom Casmurro e Quincas Borba e uma série de contos do velho Machado; um mais fino estilista, sem dúvida, o escritor carioca, com a graça da sua silogística cinzenta e a sua paciente ordenação das personagens no tempo e no espaço. O baiano, apesar do apuro que, pouco a pouco, está também atingindo, ainda se espoja no sumo de sua linguagem, ainda brinca em serviço, como se diz. E felizmente o faz! Pois se é verdadeiro dizer que o estilo é o homem, temos que Machado é mais estilo que homem, e Jorge Amado mais homem que estilo. E esta é, em última instância, pelo menos a meu ver, a classe de escritores que realmente fecundam a língua que realmente libertam as personagens da sua própria teia psicológica e as fazem saltar, vivas e ardentes, para o lado de cá do livro. 
Não somos um país de grandes prosadores. Alguns dos melhores são, a meu ver, poetas como Bandeira e Drummond, ou poetas a ser, como Rubem Braga, que é para mim, neste momento -- em que pese a freqüente displicência que a obrigação da crônica diária lhe traz -- o melhor prosador do idioma. Digo prosa, entenda-se bem. Grandes romancistas nós os temos, alguns aliando à vocação qualidades ímpares de estilo; e, infelizmente, nesta linha, o maior dêles, na minha opinião, morreu: Graciliano Ramos. Mas a maioria dos que procuraram narrar com estilo, nas pegadas do velho Machado, ou por imperativo de sua própria condição de escritor, secaram a língua, fizeram dela não um saboroso pão, cheiroso e de sustância; produziram finos biscoitos quebradiços que se prova uma vez com delícia, mas cuja repetição resulta enjoativa. A êsses prefiro francamente a incúria estilística de um José Lins, de um Jorge Amado da primeira fase, de um Otávio de Faria, que se prejudica o prazer sibarita da leitura de sandálias, em nada lhes subtrai a capacidade de criar mundos de romance onde as personagens "vivem".
Eu acho francamente belo o crescimento de um escritor como Jorge Amado, que vem desde um livro cheio de defeitos como O País do Carnaval até essa obra-prima que é A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. Um crescimento verdadeiro como a vida, que vem de baixo para cima e sem se recusar às torpitudes; não um crescimento decorativo de araucária, mas de árvore que dá fronde e que dá frutos de polpa, que dá parasitas e dá passarinhos: uma gorda e resinosa mangueira. E que melhor comparação, para o deleite da leitura dêsse baiano da peste, que o de comer mangas, os dentes mordendo fundo a carne da fruta, a terebentina escorrendo pelo queixo no seu amarelo pungente, a gulodice de enxugar o caroço até o fim...
Saí da leitura dessa extraordinária novela, eu que andava no maior fastio de literatura, com a mesma sensação que tive, e que nunca mais se repetiu, ao ler os grandes romances e novelas dos mestres russos do século 19, Pushkin, Dostoievski, Tolstoi, Gogol especialmente. Uma sensação de bem-estar físico e espiritual como só dão os prazeres do copo e da mesa, quando se está com sêde ou fome, e os da cama, quando se ama. Ela representa dentro da novelística brasileira, onde já há cimos consideráveis, um cume máximo. Um cume que todos os escritores jovens devem ter em mira, numa sadia inveja e num saudável desejo de ultrapassá-lo. E tanto pior se o não fizerem.


(Publicado inicialmente em Última Hora, Rio de Janeiro, 1959)

Jorge Amado Povo e Terra -- 40 Anos de Literatura, prefácio de José de Barros Martins, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1971.


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em tudo isso não deixa de fluir uma «flagrante» apresentação de ausências, razão por que, se nessa conferência existe Plekhanov, existe-lhe, por outro lado, Téophile Gautier, o teorizador oitocentista da «arte pela arte», e, claramente, os defensores de valores contrários. Assim, na conferência de Redol existe Saint-Simon, Proudhon, Kropotkine, Pelloutier, Plekhanov, mas sem deixar de existir, entre Plekhanov e Redol, o artigo «O Antiburguesismo da Cultura Nova», assinado, como vimos, por Álvaro Salema, em Janeiro do ano anterior.
     Não cabe aqui, nem trazer esse encadeamento de filiação romântico-positivista, que abordamos em outro lugar, nem focar aspectos convergentes verificados em certas divergências, como 

Fernando Alvarenga, Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo Visual Português, Porto, Edições Afrontamento, 1989, p. 25, ls. 1-12.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sempre que do portão...

Sempre que do portão se avizinhava mero turista ou descobridor de mistérios e o sino ficava longo tempo a retinir pela ribeira, ouviam-se pesados bate-lajedos de caseiro em movimento.

Ruben A., início de A Torre da Barbela (1964), introdução de José Palla e Carmo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988 -- «Romances Portugueses -- Obras Primas do Século XX».