terça-feira, 31 de dezembro de 2013

asas

«Nas estações, nos povoados, acendiam-se as luzes. Ela olhava os focos luminosos surgirem da penumbra do anoitecer como se fossem lampadários postados para ela, só para ela, para iluminarem a sua ressurreição. Em que asas se erguia? Sentia-as na alma, «mas que tenho eu hoje?», tão viçosas e frescas que não ousava tocar-lhes.»

Maria Archer, Ida e Volta duma Caixa de Cigarros (1938)

como num poema

«Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre é a terra, mais rico é o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a doçura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia.»

Sophia de Mello Breyner Andresen, «O Jantar do Bispo», Contos Exemplares (1958)

domingo, 29 de dezembro de 2013

de Baudelaire

Fogachos. Sugestões. -- Quando um homem cai à cama, quase todos os seus amigos têm um secreto desejo de vê-lo morrer; uns para verificarem que ele tinha uma saúde inferior à deles; os outros, na esperança desinteressada de estudar uma agonia.

O Meu Coração a Nu precedido de Fogachos (1887)

sábado, 28 de dezembro de 2013

estátua: a de cima, a permanente, a sem estilo

«Vou começar pela estátua: a de cima, a permanente, a sem estilo, a que chora lágrimas de cobre, a que lega à posteridade a imagem circunspecta de um homem com um laço desajeitado, colete quadrado, calças largas como sacos, bigode em desalinho. Flaubert não corresponde ao olhar. Olha fixamente para Sul, da place des Carmes em direcção à Catedral, por sobre a cidade que desprezou, e que, por sua vez, o ignorou largamente. A cabeça está a uma altura proibitiva: só os pombos podem ver a extensão total da calvície do escritor.»

Juçian Barnes, O Papagaio de Flaubert (1984)
tradução: Ana Maria Amador

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

um sorriso de inescrutável contentamento

«O corpo foi exposto, em caixão aberto, na capela. O Rev.º Heathcote ajoelhou ao lado, a rezar. Amphillis e eu fomos trazidos para o ver. O tio estava branco como o marfim, mas não mais pálido do que fora em vida. Havia um sorriso de inescrutável contentamento no seu rosto, e parecia dormir feliz, como alguém de posse de um precioso segredo, que confiadamente aguarda um auspicioso acontecimento.»

Maurice Baring, O Trono e o Altar (1930)
tradução: Jorge de Sena

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

pretos reforçados

«Éramos quatro ou cinco, em torno da pequena mesa de ferro, no bar do parque. Alegre véspera de Natal! As mulatas iam e vinham, com requebros, sorrindo dengosamente para os soldados do Regimento de Cavalaria. No caramanchão, outras dançavam maxixe com pretos reforçados, enquanto um cabra gordo, de melenas, fazia a vitrola funcionar.»

Cyro dos Anjos, O Amanuense Belmiro (1937)

domingo, 22 de dezembro de 2013

flagelo em forma humana

«Mané Frajelo fora um apelido posto na cidade. Pegou. Um flagelo, de fato, aquele homem gordo, de setenta anos, que falava com uma voz arrastada e vestia miseravelmente. Manoel Misael de Souza Telles era o seu verdadeiro nome.»

Jorge Amado, Cacau (1933)

um bolero no rádio

«Aranhiços de barcos corriam sobre o Tejo. Um bolero no rádio enxotou-me aos pulinhos dançados para a porta: agarrei-me ao armário para não ser levado numa enxurrada de bemóis.»

António Lobo Antunes, Auto dos Danados (1985)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

da empatia

«De manhã, quando acordo melancólico e mal disposto, uma simples viagem no metro apinhado é quanto me basta para me recompor. À minha volta, apenas rostos boçais que, mal se sentem observados, se fazem manhosos ou fugidios.»
Raymond Abellio, Os Olhos de Ezequiel Estão Abertos (1949)
tradução: Rafael Gomes Filipe


como se fora nada

«Saberão qualquer coisa sobre o meu fim? Um vestido perfurado por balas, manchado de sangue, um nome riscado nos registos do campo: foi assim que soubemos qual fora o destino de outras desaparecidas na noite.»

Geneviève de Gaulle Anthonioz, A Travessia da Noite (1998)
tradução: Artur Lopes Cardoso

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

à noite

Às vezes, o que se dava sempre durante a noite, quando o bosque invisível, sacudido pelo vento soltava lastimosos gemidos, um ou outro doente, tomado duma angústia mortal, começava a gritar. Acudiam-lhe, geralmente, com rapidez para que ele acalmasse; mas havia ocasiões em que o terror e a angústia eram tão fortes que tornavam ineficazes todos os sedativos -- e o enfermo continuava a gritar. Então a angústia contagiava todos os habitantes da clínica, e os doentes, semelhantes a bonecos mecânicos a que se tivesse dado corda, punham-se a percorrer, cheios de nervosismo, os seus aposentos, ao mesmo tempo que esbracejavam e proferiam coisas estúpidas, ininteligíveis. Todos, incluindo os doentes menos agitados, batiam violentamente nas portas e pediam que os libertassem.

Leonid Andreiev, Os Espectros (1904)
tradutor anónimo

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

medindo o peso com que caía

«Ele ficou a ouvir a água a escorrer e, medindo o peso com que caía, umas vezes mais forte, outras mais branda, imaginava o corpo assim reluzente -- e um grande calor lhe acudiu às partes vergonhosas. Quando Tareja voltou, enfeitada com ricos atavios, cheirando a rosmaninho, disse ela:»

Augusto Abelaira, O Bosque Harmonioso (1982).

domingo, 15 de dezembro de 2013

príncipes e sapos

«--É no falar que se revelam os príncipes e no coaxar que os sapos se denunciam -- dissera Trony, para logo acrescentar --, pelo que ao meu amigo lhe aconselho a mais severa abstinência verbal. Não abra a boca que não seja para engolir as moscas.»
José Eduardo Agualusa, A Conjura» (1989).

sábado, 7 de dezembro de 2013

bem escrito


«[...] Em Robben Island, nos anos 70, os homens do ANC recitavam Shakespeare, e liam-no através de um exemplar das "Obras Completas" que pertencia a um dos militantes, Sonny Venkatrathnam. Venkatrathnam disfarçou a capa do livro, um capa dura, com ilustrações de divindades hindus, e disse que era um livro de textos sagrados. Com a espessura típica dos burocratas, os carcereiros nunca espreitaram para dentro das páginas. Na verdade, não se tratava de uma mentira. O livro era, para os encarcerados, um texto sagrado. [...] 
Clara Ferreira Alves, «O grande Mandela», Expresso, 7.XII.2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Literatura implacável

Arundhati Roy sabe muito bem que sem estilo nem oficina, isto é, sem arte, não há literatura; e por isso adapta a crueldade de que a vida se entranha a uma estética que não alivia nem carrega: o desconcerto do Mundo é suficiente para que nos seja relatado com realismo, com implacável realismo. O resto é mestria da escritora na ordenação do caos.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Maio em Ayemenem é um mês quente e abafado.


Maio em Ayemenem é um mês quente e abafado. Os dias são longos e húmidos. O rio estreita e corvos pretos devoram mangas reluzentes nas árvores imóveis no seu verde-pó. Bananas vermelhas amadurecem. Jacas rebentam. Vespas dissolutas zumbem indolentemente no ar suculento. Depois chocam contra a limpidez das vidraças e morrem, inchadas e aturdidas pelo sol.

Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas [1997], tradução de Teresa Casal, Lisboa, Biblioteca Sábado, 2010.