terça-feira, 11 de agosto de 2015

ver de baixo

3. Ao segundo dia de seminário, o estranhamento e o sofrimento persistem. As impressões visuais e auditivas inscrevem-se na memória do narrador, para sempre: «[...] perto do Seminário, ressoavam as pancadas de um tanoeiro que nunca mais esqueci.» 
O espaço, os objectos, os vultos são, aos olhos daquela criança, exponencialmente ampliados em face da própria pequenez da infância; os condiscípulos, rudes e toscos, como um espelho que o reflecte: 

«Decerto porque a maioria vinha da raça da gleba. Empenados, talhados à podoa, recozidos das soalheiras através das gerações, trazíamos na face negra a nossa condenação. Havia-os baixos, cheirando a terra, com dois pulsos grossos como dois eixos de carro. Havia-os altos, ossudos, com o peito largo encovado. Uns tinham a bola grande do crânio integralmente rapada. Outros, com duras repas de cabelos a enchumaçar-lhes o pescoço, abriam o seu pasmo cavernoso e lento de bichos. De olhar assustado e ferino, de olhar morto de boi, infelizes e inocentes, eu olhava-os como irmãos do fundo do meu sofrer.»

O recolhimento, ao fim do dia, a criança desprotegida, a sós com o seu medo e a sua fragilidade, entrega-se à noite -- «Chorei quanto pude até que a noite foi minha irmã e eu fui irmão da noite, um diante do outro, calados e de mãos dadas.» -- único território de liberdade, que permite a António transportar-se para a memória dos seus entes e dos seus lugares. 

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