terça-feira, 4 de agosto de 2015

dor n'alma

2. Gervásio despachado para Lisboa, é agora Ricardo de Loureiro quem concita a atenção de Lúcio. Neste capítulo de construção rudimentar, o narrador-protagonista é como que o anotador das angústias e dos estados de alma de Ricardo (também ele alter ego do autor, nas encruzilhadas íntimas e na amargura das disformidades físicas). Continua a vincar-se a desconformidade dos protagonistas, por pose ou inclinação profunda, com o que está convencionado e é aceitável em sociedade. Lisboa, de resto, é a primeira a ser riscada do mapa, mesquinha e provinciana para espíritos requintados diante da luminosa Paris -- «É o único ópio louro para a minha dor -- Paris!» --, quando, em crise, não sentem a nostalgia da simplicidade nunca vivida.
Quanto a Ricardo, aprisionado dentro de si em confissão a Lúcio, um fóbico que sente fisicamente a alma e dores no espírito, acaba por revelar(-se) artificiosamente (tudo aqui é artificial, excepto o sofrimento) na sua bissexualidade. 
(parágrafo)
«--É isto só: --disse -- não posso ser amigo de ninguém... Não proteste... Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura trás sempre consigo um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os meus desejos, posso sentir realmente aquilo que os provocou. A verdade, por consequência, é que as minhas próprias ternuras nunca as senti, apenas as adivinhei. Para as sentir, isto é, para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou mulher ou homem. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir. Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo, se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.»



Mário de Sá-Carneiro, A Confissão de Lúcio (1914)

Sem comentários:

Enviar um comentário