sexta-feira, 8 de março de 2013

NA SOMBRA

Este Jean Jacques Brousson, o provinciano astuto e erudito, «negro como um cacho de moscatel seco», que se deixou assimilar por Anatole France, durante seis anos de colaboração e de intimidade, vingou-se dos maus tratos que o mestre deu à sua paciência de investigador, publicando o livro Anatole en pantoufles.
Nesses seis anos, pode dizer-se que Brousson não viveu da sua própria vida, porque via pelos olhos de Anatole e falava pela sua boca.
Foi o caso mais flagrante de absorção que registam os anais literários.
Napoleão dizia que não havia grandes homens para os seus criados de quarto.
Creio bem que o doméstico de Napoleão, ao vê-lo em ceroulas, lhe custasse a acreditar que aquele homenzinho ridículo pudesse governar o mundo.
No livro de Brousson vemos o divino Anatole reduzido a um pândego sensualão, facilmente gabarola das suas boas fortunas com mulheres, vaidoso e forreta.
Liberto pela morte do seu senhor, o escravo acentua a sua nova personalidade, despojando o ídolo das suas roupagens sumptuosas e apresentando-o, para gáudio dos amadores de escândalo, em trajes de andar por casa.
Mas o espírito de Anatole France tem uma luz tão intensa, que o sr. Brousson, deslumbrado, só pôde despi-lo na sombra... à traição.

Mercedes Blasco, Querem Saber?, Lisboa, J. Rodrigues & C.ª, 1928.

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