sexta-feira, 9 de maio de 2014

leituras de 2014 - #24 BARRANCO DE CEGOS


Barranco de Cegos (1961) conta o fim de um tempo, entre o Ultimato inglês (1890) e o pós-5 de Outubro de 1910, e revela-nos uma família de grandes lavradores ribatejanos, cujo chefe é uma personagem inesquecível: Diogo Relvas, homem excessivo, cruel e reaccionário, fiel a uma tradição agrária que vê na terra as virtudes ancestrais duma nação, e no desenvolvimento industrial a condenação da pátria, motivada pela cupidez e pela ambição de poder de uma elite cega -- cegos conduzindo cegos, uns e outros na iminência de caírem num barranco, de onde dificilmente se sairá. Relvas carrega consigo o peso dos antepassados, regendo-se por uma ética abstracta, inflexível quanto ao essencial -- a manutenção do poder: simbólico, através dos cerimoniais do mando, e de facto,  pela posse efectiva do agro; inflexível no essencial, moderadamente maleável quanto a questões mais prosaicas. As restantes personagens, em especial os filhos, órfãos de mãe, débeis, volúveis -- um deles esmagado pelo peso excessivo do progenitor --, as duas filhas, Milai e Maria do Pilar, fortes e marcadas, complexas no lidar com o patriarca, dão profundidade ao romance. Outras personagens secundárias, em especial as populares, são também fundamentais; mas esta é uma história de senhores, homens senhores doutros homens.
No prefácio que escreveu em 1964, Mário Dionísio, que não era de elogio fácil e se afastara já do PCP, não hesita em classificar o livro como "um dos grandes romances de toda a nossa história literária".
Barranco de Cegos é, com efeito, literatura da boa, da que conta, da que interessa, da que constrói identidade, da que dá substrato à comunidade de que emana -- e também da que experimenta, da que burila, da que arrisca. Para além de todas as classificações que cada vez fazem menos sentido, a não ser numa abordagem historiográfica, trata-se de neo-realismo, e do melhor -- isto é: não evidenciando a vulgata que simplifica e sectariza, é suficientemente amplo para ser subscrito por todos quanto comungam de preocupações afins, sem que com isso o autor traia (e se traia) o escopo ideológico que lhe subjaz. O final do romance, magistral, traz-nos uma atmosfera que dir-se-ia paralela à do realismo mágico, que o recém-falecido Gabriel García Márquez consagraria anos mais tarde.
Redol é, sempre foi -- mesmo no inaugural Gaibéus (1939) -- um romancista de raça, um criador de mundos, de atmosferas, de personagens de carne e osso. Barranco de Cegos evidencia-o de tal forma que -- para desgosto de alguns cadáveres -- se inscreve duradouramente no nosso cânone literário.   5*****

Ficha:
Autor: Alves Redol
título: Barranco de Cegos
editora: Edições Avante!
local: Lisboa
ano: 1982
(ano da 1.ª edição: 1961)
impressão: Guide-Artes Gráficas, Lisboa
ilustrações: Jorge Pinheiro
págs.: 414
tiragem: 5000

2 comentários:

  1. Magistral o livro! Magistral o comentário! (que subscrevo, com a devida vénia). Sabendo, embora, que "Barranco de Cegos" é por muitos tido como a obra prima de A. Redol, fiquei guloso de ler mais qualquer coisa do (esquecido) mestre. FF

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  2. Muito obrigado, pela parte que me toca! É sempre bom mergulharmos no nosso património literário, sem descurar, é claro, o que se faz hoje.
    Um abraço

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