terça-feira, 29 de março de 2016

microleituras

Conferência proferida em 15 de Dezembro de 1972 no Museu João de Deus, evocando o filho deste, João de Deus Ramos. Alocução emotiva de alguém que fora amigo de Ferreira de Castro, desaparecido 19 anos antes, e que procurou honrar o nome e a obra do pai, materializando-a através da criação dos Jardins-Escolas João de Deus, pondo em segundo ou terceiro planos a obra própria. A propósito do autor de Campo de Flores, Castro lembra o contacto precoce, através das selectas, com a poética sensível e delicada do vate algarvio e o que representava para si a poesia,  nesses tempos infantis pouco auspiciosos, à partida. Edição sem aparato técnico, fora do mercado, provavelmente de tiragem muito reduzida.

incipit - «Minhas senhoras e meus senhores: / Talvez eu não afronte muito a lógica se vos disser que a minha ternura por esta casa, por esta admirável casa onde nos reunimos hoje, principiou antes mesmo dela existir.»

ficha:
Autor: Ferreira de Castro
título: Chamou-se João de Deus Ramos, Exactamente o Nome Paterno
edição: [Museu João de Deus?; Jardim-Escola João de Deus?]
local: Lisboa
ano: 1972
impressão: omisso
págs.: 12

quarta-feira, 23 de março de 2016

Maria Archer, «A última amante» - A PRIMEIRA VÍTIMA DO DIABO #4

«Os setenta anos do meu amigo José Gomes são duma elegância aprumada de eterno rapaz.» (incipit)

1 parágrafo:
«Uma garota.. Dezasseis, dezassete anos... Eu não seria o primeiro, evidentemente, mas ela ainda ressumava o viço da flor em botão, a graça do objecto por estrear... Cheirava a novo, a fresco, a vida no começo, a vitalidade sem gasto... Eu olhava e embebedava-me dessa graça, dessa frescura, desse lustro de novo, eu olhava-a e sentia-me rapaz, eu entontecia e esquecia que havia, entre nós, meio século de vida a separar-nos... Não a largava... Esperava por ela às horas da saída, na rua, parado, parado pelos portais, pelas esquinas, ridículo, velho ridículo, a julgar que fazia a mesma vista dos rapazes que esperam a saída das raparigas...» (1954)

Mário Gonçalves Viana, «"A Selva", uma obra-prima»- FERREIRA DE CASTRO E A SUA OBRA (1931)

«Se há livros que mereçam a classificação de notáveis, A Selva é, incontestavelmente, um deles.» (incipit)

1 parágrafo:
«A riqueza do vocabulário, a propriedade dos termos, a evocação cheia de intensidade pictórica -- tudo transmite a este romance as características dum autêntico poema em prosa.» (1930)

Manuel Antunes, «O renascimento da ficção em prosa com o Romantismo» - LEGÓMENA #4

«Estava na dialéctica da história que a prosa de ficção renascesse com o Romantismo.» (incipit)

1 parágrafo:
«Todas as direcções do movimento romântico levam, pois, em linha recta, a uma renascença da ficção, nomeadamente da ficção em prosa. Porquê da ficção em prosa? Porque havia o exemplo ilustre medieval e quinhentista; porque a prosa, tornada maleável e rica ao longo dos séculos clássicos, estava apta para, vitalizada, se converter em óptimo veículo da nova sensibilidade; porque um século burguês dificilmente aceitaria assim generalizado o coturno  da epopeia -- e uma das flechas do Romantismo aponta ao contemporâneo, ao presente.» (1956)

Anton Tchékhov, «Camaleão» - CONTOS E NOVELAS #4

«O inspector da polícia Otchumelov, de capote novo e um embrulho na mão, atravessa a praça do mercado, seguido de um guarda ruivo que transporta uma peneira cheia de groselha. (incipit, 1884)

Manuel Antunes, «Da essência da tragédia» - LEGÓMENA #3

«A tragédia é, pela sua própria natureza, o mais filosófico dos géneros literários.» (incipit)

1 parágrafo:

«Os gregos cedo pressentiram a complexidade da existência. Idealizadores natos, criaram mitos e inventaram deuses que simbolizassem e personificassem cada um dos muitos planos do real. O homem tenta realizar-se em vários, ao mesmo tempo. Fazendo-o, ultrapassa a medida, infringe a ordem do universo. Essa infracção ou é consciente e livre ou inconsciente e fatal. No primeiro caso, era clara para esses grandes amigos do "cosmos" a necessidade do castigo, ligado à justiça, à "Dike" imanente. No segundo caso, à falta de idêntico princípio de inteligibilidade, responsabilizavam pelo facto um poder superior e misterioso: a "Moira". À "Moira", que, de onde a onde, nos aparece, também ela, dominada por outra realidade mais forte, era, para eles, a expressão angustiada e angustiante do mistério último da existência.» (1954)

Anton Tchékhov, «O gordo e o magro» - CONTOS E NOVELAS #3

«Na estação de caminhos-de-ferro "Nikolaevskaia" encontraram-se dois amigos -- um gordo e o outro magro.» (incipit)

1 parágrafo:
«O gordo quis objectar qualquer coisa, mas ao ver no rosto do outro tanta devoção, doçura e submisso respeito, sentiu-se enojado. Voltou a cabeça e estendeu a mão em jeito de despedida.» (1883)

Nogueira de Brito, «Ferreira de Castro e a sua obra literária» - FERREIRA DE CASTRO E A SUA OBRA (1931)

«Ferreira de Castro, a quem acaba de ser prestada homenagem de admiração pelo seu talento e, na moderna geração literária, um dos valores mais curiosos pela orientação mental que tem inspirado à sua obra de reconstrução mental e psíquica.»

1 parágrafo:
«Os tipos, que a sua obra incarna, são exemplos da vida, e não há um gesto, um vinco de fisionomismo que não atinjam uma verdade irrefutável, um sentido de exactidão a que não está acondicionado o género novela, tão escassamente conseguido. Carácter e individualidade, moral e temperamento, tendências e atavismos, andam na obra de Ferreira de Castro como coisa existente, a valer, sem deformação, sem tintas esmorecidas, antes com um vinco de beleza moral e uma característica de perfeição honrosa que impressionam. Em Ferreira de Castro não há elevação "estudada" do sentir afeiçoado à exigência da efabulação, a rebuscada irradiação de emotismo coado pela oportunidade mais ou menos feliz; há, sim, a espontaneidade que nasce da cena real da existência, sem qualquer assomo de artifício, sem clangores de retumbâncias festivas, nem estilizações frívolas de colorismos doentios e insinceros. É uma obra feita de justeza, de equilíbrio, de calma e objectivação e dela fica a semente a lançar à terra em futuras colheitas de análise sentimental, em próximas depurações de psiquismos e de vibracionismo íntimo.» (1928)

Maria Archer, «Os meus olhos abertos» - A PRIMEIRA VÍTIMA DO DIABO #3

«O juiz olha para mim de frente, fita-me nos olhos, quer apanhar-me a alma.» (incipit)

1 parágrafo:
«Elas não viram o nosso lar por dentro. Uma prisão. O pai, caixeiro de praça, à noite porteiro dum teatro, só ia a casa para comer e dormir mas deixava-nos ordens e ai de nós se não as cumpríssemos! A nossa vida regulava-se pelo terror. Às vezes, inopinadamente, entrava-nos pela porta em passos leves de ladrão, surpreendia-nos nos afazeres, corria os aposentos de ponta a ponta, abrindo tudo, vistoriando os armários, procurando debaixo das camas. Demorava-se uns minutos, olhando-nos ferozmente, em algoz, rebuscando não sei o quê, talvez os amantes escondidos, talvez as amigas que nos proibia de receber. Depois saía, remoendo palavras duras, e insatisfeito, rancoroso, apesar de não ter encontrado rabo por onde pegar-nos. Creio que o seu secreto desejo seria apanhar-nos em falta, uma grande falta, deboches, paródias, que justificassem as suas suspeitas e lhe permitissem castigar-nos na medida da fúria em que se debatia.» (1954)

terça-feira, 22 de março de 2016

livros que me apetecem

Um Breve Guia para Clássicos Filosóficos, James M. Russell (Temas & Debates)
Canto Longo & Outros Poemas, Francisco d'Eulália (Modo de Ler)
A Casa em Paris, Elizabeth Bowen (Relógio d'Água)
A Grande Guerra de Afonso Costa, Filipe Ribeiro de Menses (D. Quixote)
Gratidão, Oliver Sacks (Relógio d'Água)
Lusitânia Romana -- Origem de Dois Povos, VV. AA. (IN-CM)
Os Navios da Noite, João de Melo (D. Quixote)
A Noite em que a Noite Ardeu, A. M. Pires Cabral (Cotovia)
A Poeira que Cai Sobre a Terra, Francisco José Viegas (Porto Editora)
Sibéria, Olivier Rolin (Tinta da China)
Um Sol Esplendente nas Coisas -- Cartas para Alberto de Lacerda, Mário Cesariny (Sistema Solar)
A Última Noite e Outras Histórias, James M. Salter (Livros do Brasil)














Manuel Antunes, «Literatura de hoje, ideologia vital» - LEGÓMENA #2

«Ideologia encarnada, a literatura foi-o, mais ou menos, sempre.» (incipit)
«Que quer isto dizer: "expressão duma opção vital"? Isto quer dizer -- negativamente -- que as categorias de Verdade, de Beleza, de Racionalidade deixaram de ocupar o primeiro plano no quadro espiritual -- e por consequência ou concomitância -- também literário dos nossos dias. Isto quer dizer -- positivamente -- que neles irromperam, dominadores, o apetite de viver, a paixão da aventura, o prestígio da magia, e o sentido do mistério. Isto quer dizer -- numa palavra -- que Apolo cedeu perante Diónisos, que o deus da tempestade destruidora e da noite fecunda venceu o deus do dia luminoso e sereno.» (1954)

segunda-feira, 21 de março de 2016

Anton Tchékhov, «O Dote» - CONTOS E NOVELAS #2

«Na minha vida tenho visto muitas casas, grande e pequenas, velhas e novas, de alvenaria e de madeira, mas há uma que tenho gravado na memória com particular nitidez.» (incipit)
excerto:
«As pessoas que vivem no meio de amoreiras, acácias e bardanas são indiferentes à natureza. Só os veraneantes entendem os encantos da natureza, permanecendo o resto da humanidade, nesse aspecto, na mais crassa ignorância. Os homens não dão valor àquilo que têm em abundância. "Não sabemos gozar o que a sorte nos oferece..." Pior: não apreciamos aquilo que a sorte nos oferece.» (1883)

Martin Parapar, «Ensayo lirico sobre Ferreira de Castro» - FERREIRA DE CASTRO E A SUA OBRA (1931) #2

«Ferreira de Castro, el de los ojos eternamente tristes y añorantes; el de la sonrisa de nño ingenuo; el de los grandes y acariciantes debordamientos afectuosos; el hombre estraño que ha robado sus extrañas gemas a los ponientes del tropico, cuando caminaba, borracho de color de la maravilla escenográfica, a orillas del Amazonas;» (incipit)

1 parágrafo:
«Así dejemos a este puro poeta, ¿poeta?, poeta, sí, poeta, entre los rebeldes y gustemos su obra buena y sana, que nos ha de conducir fatalmente a una sociedad de amor y belleza, cuya viejas y pútridas simientes hayan sido purificadas por la sangre y el fuego.» (1926)

Maria Archer, «A terra chama os seus homens» - A PRIMEIRA VÍTIMA DO DIABO #2

«Moreira é o Eden do Minho.» (incipit)
1 parágrafo:
«A aldeia serrana modara sobre a antiga Bety, a da Califórnia, uma camponesa rude, enxovalhada, de pele curtida pelos temporais e corpo seco como as raízes. Mas a alma da rapariga que viera da Califórnia não se deformara nem se amolgara. Era uma alma de rapariga livre, sequiosa de vida, curiosa de tudo, que não se conformava com a aldeia, com o horizonte fechado pelas serras, com as gentes fossilizadas na serra, e se escapava, pela aventura, o risco, a fantasia em que se joga a vida, à mesquinhez do quotidiano vizinho da morte.»

domingo, 20 de março de 2016

Manuel Antunes, «Críticos e autores. Simples reflexões» (1952) - LEGÓMENA #1


Incipit - «Críticos e autores, cumprindo a sua missão ou seguindo o seu destino, estão feitos para se entenderem no terreno comum da realidade objectiva.»
1 parágrafo - «Somos adultos demais, para julgar as coisas como as julgaria um grego dos tempos homéricos. Pensar os problemas na categoria da história, é exigência que não escolhemos mas que nos impõe o facto de vivermos nesta altura meridiana do século XX. Por isso, não será tempo de lançar um pouco mais de compreensão sobre a chamada crítica universitária que alguns tão apressada e irremissivelmente condenam? Creio bem que sim. Embora incompleta, porque, as mais das vezes, se desenvolve no terreno da pura erudição, contudo é dela que temos de partir se queremos formular juízos exactos e não ficar apenas nos tons indecisos dum impressionismo subjectivista. Apurando datas, inventariando obras, situando autores, é sobre ela que, em última análise, deve basear-se a crítica estéetica.» 

Jaime Brasil, «Notas biográficas e bibliográficas» (1931) - FERREIRA DE CASTRO E A SUA OBRA - #1

Incipit - «Ferreira de Castro é o mais representativo dos romancistas da nova geração literária em Portugal.»
1 parágrafo - «Quando arribou à terra brasileira, misteriosa e promitente, levava na sua bagagem, entre outras ilusões pueris, as ingénuas crenças religiosas, que aprendera no berço. Perdeu-as, pouco a pouco, crescendo, adubada pelos detritos delas, uma consciência liberta e inflexível ante os problemas eternos.»

sábado, 19 de março de 2016

Maria Archer, «A mais velha e a mais nova» - A PRIMEIRA VÍTIMA DO DIABO #1

Incipit - «Casada a filha, assente em residência definitiva, no palácio de Lisboa, Olga, a Olga de Castro Marim, sentiu-se só e imaginou-se só no solar do Corgo.»
um parágrafo - «No Corgo riam-se agora da Gaby, desforravam-se, zombando dela, da sua sobranceria na época em que habitava o solar. Marcavam-na de alcunhas torpes, escreviam-lhe cartas anónimas. A garotada assobiava-a mal a apanhava na rua, mesmo de carro. Ela via-os e ouvia-os, exasperava-se até à alucinação, desvairava da ânsia de atirar com o automóvel sobre a manada bravia que a insultava e lhe mimava acenos indecorosos. Por fim fizeram-lhe versos achincalhantes que a raparigada dos lavadoiros públicos cantava alto, na toada das músicas vulgarizadas na Rádio. A influência dos Castro-Marim já a não protegia e ela não tinha dinheiro, não dispunha da força do dinheiro, não podia favorecer ou prejudicar ninguém pelo poder do dinheiro, e a cobardia colectiva exultava no gozo de desforrar-se insultando impunemente.» 

"A cobardia colectiva", a facilidade, o gozo de rir-se de quem decaiu.

A ler: Tchékhov e os jovens escritores

Na introdução à bela edição de Contos e Novelas, um texto evocativo de Aleksandr Kuprin, «À memória de Tchékhov:
«Tchekhov tratava sempre os escritores jovens e incipientes com simpatia, atenção e carinho.. Nunca fez ninguém experimentar a deprimente sensação de inferioridade e insignificância perante o seu enorme talento. Nunca disse a ninguém: "Faça como eu, siga o meu exemplo." Quando alguém se lhe queixava, desesperado, nestes termos: "Valerá a pena escrever se nunca hei-de passar de um jovem que promete? -- ele respondia com voz calma e grave: / "Meu caro, é impossível que todos escrevam como Tolstoi."»

quarta-feira, 16 de março de 2016

microleituras

Literatura adulto-juvenil, conto publicado em 1997 sobre Nino, um menino gordo que quando quer fica magro ou muda de tamanho (até ao volume duma bolinha de roleta...), e seu pai, o Sr. Branco, que, quando se distrai e fala muito, vai crescendo progressivamente, o que, por vezes, dificulta a apanha, não da azeitona, mas do transporte para o emprego. Periodicamente desempregado, é quando faz incursões com Nino num qualquer casino. Daí a referência à bolinha da roleta... Em seguida empreendem lauto jantar num restaurante caro, a grande cena do livrinho. Livrinho, de resto, inicial de um conjunto familiar que integra, por ordem, Uma Mãe Porreira É prà Vida Inteira, Filhos Assim Dão Cabo de Mim, Avó não Pise o Cocó e, grande remate, A Prima Fica por Cima, todos reunidos em Uma Família sem Mestre. As ilustrações de Pedro Proença são excelentes. 

incipit - «Nino era um miúdo muito gordo, mas que também sabia ser magro. (Nino é diminuitivo [sic], o verdadeiro nome de Nino é Menino).

ficha
Autor: Alface
título: Um Pai Porreiro Ganha Muito Dinheiro
colecção: "Fenda das Raparigas" #3
editora: Fenda
edição: 3.ª
local: Lisboa
ano: 2001
ilustrações: Pedro Proença
impressão: Arte Mágica
págs.: 60
tiragem: 1000

terça-feira, 15 de março de 2016

microleituras

Texto elegíaco para um cão amado, cão que foi ente, ser relacional tornado amigo próximo (família?), irmão, cúmplice, parceiro. "Primeiro cão" e "último cão", desde sempre sonhado e esperado, desde a infância solitária, quando se procura distinguir o nome e a essência das coisas.

incipit - «________ houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o recém-nascido ________ o meu cão Jade, há muito tempo; muito e com grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível,
num berço nem celeste,
nem terrestre.»

ficha
Autora - Maria Gabriela Llansol
título: Amar um Cão
colecção: «Livro carta»
editora: Colares Editora
local: Colares
ano: s.d.
ilustrações: Ruth Rosengarten
impressão: Manuel Batbosa & Filhos
págs.: [28]

segunda-feira, 14 de março de 2016

microleituras

Uma visão realista-pessimista dos efeitos do declínio do poder americano no mundo, não por défice de poderio militar, nem sequer pelos problemas estratégicos que um elevado endividamento externo (a China é o principal credor) pode acarretar; mas, fundamentalmente, pela queda da autoridade moral dos EUA, que tem início com a II Guerra do Iraque -- um monumental e criminoso embuste (não o diz o autor, mas digo eu), cujos efeitos estamos e estaremos, por muito tempo a, pelo menos, presenciar. A América terá, portanto, deixado, na visão o autor, de ser um factor de contenção, pelos sinais de esticar de corda a que vamos assistindo na cena geopolítica internacional. O que poderá originar, inesperadamente, um novo 'Sarajevo', ou seja: um incidente político aparentemente sem grande importância, no entanto rastilho para uma conflagração mundial.
A esperança que o autor revela é o papel da Europa como interlocutora internacional sólida por parte do Ocidente -- mesmo se, neste texto de 2014, Weiler aponta já os impasses que a UE atravessa, desde logo a clivagem Norte-Sul e a questão das dívidas soberanas. Se, há ano e meio, o tom do autor é cautelosamente esperançoso, eu acabo de ler este ensaio com um maior pessimismo. Surgiu, entretanto a crise dos refugiados de guerra, de que decorre a suspensão desordenada de Schengen; e, por outro lado, a a própria falta de autoridade moral da Comissão Europeia pela forma como lidou com a Grécia e como está a tentar lidar connosco. Acresce a possível saída da Inglaterra da UE (quanto à Escócia, veremos), machadada, talvez decisiva no infelizmente malogrado projecto europeu. 

incipit - «Penso que é difícil contestar o facto de que os Estados Unidos têm sido consistentemente, ao longo deste período histórico, o protagonista mais relevante a nível internacional.»

ficha
Autor: Joseph H. H. Weiler
título: Outra Vez Sonâmbulos -- A Europa e o Fim da Pax Americana -- 1914-2014
tradução: Francisco Neto
colecção: «Argumento»
editora; Universidade Católica Editora
local: Lisboa
impressão: IDG - Imagem Digital Gráfica
ano: 2015
p+ags.: 36

quarta-feira, 9 de março de 2016

«A morte de um funcionário» (CONTOS E NOVELAS #1)

Do grotesco hilariante. Tcherniakov, modesto funcionário público, não percebe que, num ligeiríssimo incidente com um general, num teatro (espirrou-lhe inadvertidamente para cima), este possa encará-lo com a displicência que se dispensa a uma ocorrência desagradável, mas sem gravidade. O respeito de Tcherniakov pelo lugar de cada um na sociedade, presume que o incidente carece de maiores justificações e desculpas do que as que o general consentiu em receber, escrúpulo que o torna impertinente até ao absurdo, por forma a fazer-se escorraçar pelo furibundo militar. A ausência de discernimento terá como consequência o pobre Tcherniakov vir a ser tratado com a aspereza consentânea com  a sua insignificância, situação que, obviamente, muito o desconsertará.

o incipit - «Numas maravilhosa noite, o não menos maravilhosos amanuense Ivan Dmitrivich Tcherviakov assistia, na segunda fila da plateia, à opereta "Os Sinos de Corneville!.» (tradução de Andrei Melnikov, Moscovo, Edições Ráduga, 1977.)

microleituras

Um estudo datado de 1908 do grande Fialho sobre o castelo de Alvito, vila alentejana nas cercanias da Vila de Frades, que o viu nascer e Cuba, onde morreu. Verdadeira dissertação em torno da arquitectura tardo-medieval, em que o autor dOs Gatos meteu as mãos na massa dos arquivos, muito referidos em nota. E se é de Fialho de Almeida, não é de um curioso qualquer, mas de um dos maiores escritores da nossa língua. Por exemplo: um parágrafo, a propósito do despojamento dessa fortificação dos Lobos da Silveira, barões e depois marqueses de Alvito:
«A nudez das paredes caiadas e sem silhares ou lambrises de faiança ou de madeira; as janelas de poialitos toscos deladeando o portal côncavo, os pisos de adobe das câmaras e os seus toscos fogões desmoldurados, a escadaria de acesso, quase rústica, o torrejamento hirsuto e os carrancudos crenéis, tudo isto avança para nós de viseira caída, como a dizer que os Lobos daquela matilha não podiam ser senão golpeadores de espanhóis, monteiros de feras, capitães ferozes da Índia ou bandeirantes da estopa brasilenha.»
E o gozo que não dá ler-lhe a verrina intratável, no meio da erudição! O tipo gastou-se, tratou-se mal.
Faz parte do livro póstumo Estâncias de Arte e Saudade (1921).

o incipit: «O castelo de Alvito fica numa das pontas da vila, em terreno não acidentado, e é na sua projecção horizontal um quadrilátero, com quatro torres redondas nas esquinas.»

ficha
Autor: Fialho de Almeida
título: Em Alvito o Castelo
apresentação: José António Lopes Guerreiro
prefácio: Joaquim Palminha Silva
edição: Câmara Municipal de Alvito
local. Alvito
ano: 1999
impressão: Gráfica amdb
págs. 47
tirágem: 1000

segunda-feira, 7 de março de 2016

microleituras

A partir do livro póstuno de Eça de Queirós, O Egipto -- Notas de Viagem, e de dispersos vários sobre o o país dos faraós e das pirâmides, procurei perceber as razões dessa viagem, feita em 1869, a propósito da inauguração desse prodígio da engenharia que foi o Canal do Suez, motivação que espero ter mostrado que ia muito para além duma experiência mundanal forte; insiro o querido Eça na sua linhagen orientalista; anoto as descrições de Alexandria e do Cairo; e procuro contextualizar as ténues relações Portugal-Egipto nesse período. Foi um dos estudos que mais prazer me deu realizar, e talvezmerecesse ser conhecido por cá.

incipit: Eça de Queirís chegou a Lisboa, "bacharel e ocioso! -- como escreveu Fialho d'Almeida (Fialho d'Almeida, 1969, p. 105) -- com 21 anos, saído das pugnas políticas e estéticas de Coimbra, da contestação ao reitor da Universidade, Basílio de Sousa Pinto, atravessando a Questão Coimbrã -- que foi, só, a grande fractura literária do século.»

ficha: 
Autor: Ricardo António Alves
título: Eça do Egipto
separata: Taíra - Revue du Centre de Recherche et d'Etudes Lusophones et Intertropicales, n.º 11
edição: Université Stendhal
local: Grenoble
ano: 2001
págs. 36
 


terça-feira, 1 de março de 2016

caracteres móveis: o Lourenção andava a pedi-las

«Fui a casa de Lourenção matá-lo.
Pereira estremeceu, o velho ergueu os olhos devagar:
-- Quem dera!
Leandro emborcou o copo, passou as costas da mão pela boca e tornou a afirmar, apontando o cacete ensanguentado:
-- Matei-o!
A voz de Leandro foi firme, os seus olhos estavam coberto de uma névoa de lágrimas. Os outros olharam, o velho cuspiu, dizendo:
-- Não merece a pena chorar.
Pereira ajuntou:
-- Lourenção andava a pedi-las. Aposto que não tem um padre nosso por alma!
O taberneiro foi-se aproximando pra ouvir e o velho pediu:
-- Mais três, Ventura» Carlos de Oliveira, Alcateia (1944)