terça-feira, 26 de novembro de 2013

WORDS, WORDS...

Ao Guedes Teixeira

Contam que em pequenino costumava,
Ao ver-me num cristal reproduzido,
Beijar a própria boca, em que julgava
Ver a boca de alguém desconhecido

Cresci. Amei-a. E tão alheio andava,
No sonho por seus olhos promovido,
Que em vez de cartas que ela me enviava,
Eu lia o que trazia no sentido...

Rodou o tempo. Estou doente e velho...
Agora, se me acerco dum espelho...
Oh meus cabelos, noto que alvejais...

E as cartas dela, se as releio agora,
Só vejo por aquelas linhas fora
Palavras e palavras... Nada mais!

Augusto Gil, Versos  [1898], Lisboa, Ulmeiro, 1981.


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

P&R -- Amos Oz

Pode a escrita ser um fardo?  Totalmente. É um trabalho duro. Se escrevo um romance com 55 mil palavras, tenho o mesmo número de decisões a tomar. Cada palavra é uma luta.
Entrevista a Luciana Leiderfarb, Expresso / Actual #2143, 23.XI.2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

P&R (pergunta e resposta) - Valter Hugo Mãe

No momento em que está a escrever pensa nos leitores?  Não posso pensar. Os meus leitores são muito diversos. Há gente que me diz: «Os meus autores favoritos são você e o Lobo Antunes», ou «você e o Saramago», ou «você e o Dostoiévski», ou mesmo «você e o Paulo Coelho». Houve uma senhora que me escreveu, amorosa, a dizer: «Os melhores livros que li são o seu e um da Margarida Rebelo Pinto.» Aquilo que são os leitores é absolutamente indpendente do que sou eu, não posso escrever para eles. A oficina da literatura tem de ser independente do que nos dizem e do que esperam de nós. Já fui convidado para fazer textos para programas de televisão de sketches por cauda d'O Apocalipse dos Trabalhadores. Sei que tenho essa dimensão, porque gosto de me divertir, rio-me com as coisas que podem ter piada. Mas depois d'O Apocalipse escrevi A Máquina de Fazer Espanhóis que talvez seja o meu livro mais espesso na tristeza. É importante saber regressar a um lugar de solidão. Hoje sinto-me acompanhado. Mas a escrita é um processo demasiado interior, intuitivo, para que permitamos que os outros participem de forma decisiva.
Entrevista a Ana Sousa Dias, Ler #128, Outubro 2013.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

um parágrafo de Raul Brandão - HÚMUS #2

Vi não sei onde, num jardim abandonado -- Inverno e folhas secas -- entre buxos do tamanho de árvores, estátuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puíra-as e a expressão não era grotesca mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra. Na realidade isto é como Pompeia um vasto sepulcro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos...

Húmus (1917)

o que salva Abel Botelho? - AMANHÃ #8

Abel Botelho por António Ramalho
Deixo o Serafim e o Esticado, oManaio e o Silvério por essas ruas desertas pela noite, armazéns, fábricas, bairros. O encontro com Lourenço, o homem iluminado, o sindicalista, o revolucionário, que irão ouvir, fica para o segundo capítulo.
Para já, pergunto-me: o que salva Abel Botelho? Executor observante do programa naturalista, o que livra Amanhã de ser um relatório minucioso, com pormenores e alusões mais ou menos escabrosos, ou mera "reportagem" de suposta objectividade? O que faz do livro um testemunho, por certo datado, de arte literária?  Sem dúvida, a linguagem, o vocabulário rico e criterioso, as imagens, por vezes opulentas, mas sempre certeiras em face do panorama de destituição social que Botelho pretendeu transmitir

...não é para jovens - AMANHÃ, de Abel Botelho #7

Serafim e o Esticado vão recolhendo os companheiros para a reunião nocturna. Miséria material, miséria moral: não apenas a rapariga aindanúbil, esgalgada, anémica,o cabelo raro e sem brilho, em casa do Manaio, gasta e avelhentada; ou as três mulheres do Silvério, todas com ar de família, que se disputam indecorosamente pelas sobras que este lhes dará para sustento dos seus filhos, seis criancitas, todas quase da mesma idade, que refocilavam nuas, no abandono e na fome; -- mas Ventura, que, ao encontro, prefere ir ao assalto a uma menina dos fósforos:
«[...] hoje tenho lá coisa... daqui! -- Premia lascarinamente o lóbulo da orelha, e explicava, a seguir: -- Uma petizita dos Fósforos... em primeira mão, dizem... Anda a meter-se-me à cara, mesmo perdidinha por mim! / Não te dói a consciência, meu traste? / --Então! Se há-de ser outro... / -- O diabo te dê o que te falta! -- resmoneou o Manaio, enfadado. / -- Ah, por enquanto, não falta, não... graças a Deus!»

Abel Botelho, Amanhã (1901) #7
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp. 26-32.

geografias da pobreza: AMANHÃ, de Abel Botelho #6

Os topónimos dos bairros populares e operários, a Lisboa Oriental, cujo eco proletário chegou ainda até nós e persiste como património remanescente duma realidade moderna, as vilas(e também ilhas, que eu, por ignorância, julgava serem exclusivas do Porto, para onde decaíram a "Menina Olímpia e a sua criada Belarmina", de Régio; ou, em continuidade de pobreza, viveu essa brava Leonor de Servidão, o grande romance de Assis Esperança...); agora bairros e guetos sociais, classe média-alta ou festivais de música: Bela Vista, morada de Serafim-Clara e Esticado-Ana, o vale de Chelas, Rua de Marvila, Xabregas, Braço de Prata...
foto: http://musgueirasul.wordpress.com/2013/03/27/origem-da-habitacao-social-1900-ate-1960/

Como a abjecção da pobreza, a miséria,  nessa ilha do Grilo: "Ao longo de toda a 'ilha' alastrava a mesma grossa e vaga escuridão do campo. Apenas, a intervalos irregulares, algumas raras janelas, como vazias órbitas de espectros, radiavam lívidos luaceiros na absorvente espessidão da sombra. O piso, talhado no terreno natural, era um misto traiçoeiro e imundo de restos de comida, objectos de toda a sorte, cacos, barro, cisco, cascalho e lama. Na grande vala longitudinal fermentavam acidamente as podridões. Havia um cheiro acre e nauseabundo, cumulativamente a hospício, a curral e a cemitério. E dessa sórdida promiscuidade animal, dessa fruste aglomeração de miseráveis, subia para a frialdade inerte do ar, dançando nas infectas emanações de caneiro insalubres harmonias, um como surdo verrumar de febre, um atormentado e bárbaro concerto, feito ao mesmo tempo de pragas, risos, lamentações, balidos de cabras, mugidos de vacas, grunhidos de porcos, latidos de cães e choros de crianças."

consciência de si: AMANHÃ, de Abel Botelho #5

A intervenção benfazeja de Ana, que põe termo à desavença do tanoeiro (ficamos a saber o mester) e a mulher, cedendo-lhe do seu vinho, coincide com o desencadear duma borrasca e a entrada do Esticado, o homem de Ana. O contraste entre ambos os casais é total: ao desrespeito, a delicadeza; à brutalidade alcoólatra, cuidado viril, mas atencioso; à sujidade, o asseio ["Acusava bem o soalho, na sua cor açafroada e macia, o uso constante da potassa."], duas filhas para criar, uma ainda de peito. 
Mas o Esticado  tem outra coisa dentro de si: o sentimento de injustiça da sua condição social e da sua pobreza: nem trocar a roupa encharcada lhe é permitido, o casaco de ver a Deus no prego; e nem as paredes da casa impedem que o vento entre agreste pelas frinchas, "Raio de casa!" E até nos filhos, os ricos têm sorte ("Quantos [...] a nadarem em dinheiro e sem filho nenhum!" -- ou azar, eles, a ralé:  "Cada cavadela, cada minhoca!" E isso que oEsticado tem dentro de si, vai partilhá-lo, na companhia de Serafim, fora de casa: nessa noite haverá encontro de trabalhadores.
Abel Botelho, Amanhã (1901) #5
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp.13-20.

ainda a nutritiva dieta do operário lisbonense, seguindo-se inevitável episódio de violência doméstica: AMANHÃ #4

Após a aguadilha, está o leitor guardado para um pitéu, que aguardava sobre um número de O Século, com vívida caracterização: "meia dúzia de carapaus fritos. Espalmados, moles, tinham um aspecto repugnante, escabiosos de purulências brancas, nadando numa suja e crassa oleosidade, que repassava o papel em aréolas negras."
Faltava, porém, o flagelo das classes laboriosas, o vinho, que desgraçava indivíduos e famílias, a tal ponto que as publicações destinadas aos trabalhadores -- tantas vezes lidas em grupo, pois a maioria era analfabeta -- empreendiam uma profilaxia de conselhos úteis, visando afastar os homens das tabernas. (A Taberna de Zola...) O Serafim de Amanhã, pede vinho à mulher, que primeiro se faz desentendida, gracejando; informando, depois, que não há, quando percebe que seria escusado o esconde-esconde, até que, brutal, o homem a agarra pelos pulsos, insiste e esbofeteia-a. Clara, que queria protegê-lo, e proteger-se, do alcoolismo -- "Deixaste esse vício tomar-te posse do corpo" --, reage com doestos e lamentos. 
Alertada pelo chinfrim, irrompe outra mulher, magra e adoentada, porém afável, conciliadora, "uma bondade escampe água-tintada na garça translucidez dos olhos." Chama-se Ana.

Abel Botelho, Amanhã (1901) #4
Porto, Lello & Irmão, 1982, pp. 11-13

não são sãos: AMANHÃ, de Abel Botelho #3

...e os operários também não são sãos. Serafim, fisicamente comprido e corrompido, derreado e esverdeado: "o longo dorso alcachinado, onde, escorchadas com anatómico rigor, as omoplatas cavavam esqueléticas sombras"; Clara resistindo à decadência física, ("os seus olhos lutando ainda contra a consumpção, cujo triunfante estrago se anunciava já"), mas irremediavelmente condenada.
Repasto frugal, evoco Picasso, mas é em Van Gogh e n'Os Comedores de Batatas que penso, ao percorrer as linhas desta traparia humana, deparando-me com as palavras soturnas na pouca luz da cena, que um frio húmido a anunciar chuva ainda mais deprime: "A luz titubeante da candeia estirava num realce cruel todos estes sinais patentes de ruína".

Amanhã, de Abel Botelho (1901) #3
Porto, Lello & Irmão, 1982, p. 11.

sopa de pobres: AMANHÃ, de Abel Botelho #2

Temos um homem que chega a casa, a reclamar pela ceia. Chama-se Serafim, "figura esgalgada e curva". Responde-lhe uma "mulherita atarracada e bruna", com rispidez, como se estivesse farta de esperar. Serafim ordena-lhe que o sirva e estira-se sobre um mocho, "projectando o chapéu com arremesso." É um operário, e deve estar cansado dum dia de trabalho. Lesta, candeia pela mão, ela põe-lhe o tacho "sobre a gorduragem gretada das tábuas ressequidas" da mesa.
O quadro é neutralmente popular, ou quase, embora já com indícios de pobreza e desmazelo, até à pergunta da mulher, Clara, saberemos a seguir: "Estás com gana hoje?"; pretexto para olhares enviesados  e malévolos, semblantes patibulares, até à implicação animalesca, que termina com o domínio imperioso do macho, "Senta-te!", desferindo ameaças de lhe chegar a roupa ao pêlo, mais pelo hábito da ameaça que por real vontade de a agredir. Esta, por sua vez, não deixa também de largar a sua imprecação, entre o medo e o desafio que, contudo, não impedirá mais gestos e palavras que possam retomar este ordinário ritual amoroso
São assim, os rituais do amor entre o povo, brutais como o povo é -- modos e comportamento de que a pequena, média e grande burguesias alfacinhas estão arredadas -- como, de resto "o Autor" prevenira em carta-antelóqiuo do romance, dirigida " À Ex.ma Senhora D.M.D. e S.C.C." São assim, vírgula, porque o povo não se faz só destes serafins e destas claras que o narrador nos apresenta.
Para já, deixêmo-los -- depois do pão e das azeitonas -- a cear, com cinco linhas de Botelho (na minha edição), para descrever essa "negra e triste aguadilha, mosqueada de olhitos de azeite, condensando na frialdade do ambiente um vapor nauseabundo, e de cuja dessorada fluidez a quando e quando emergia a ironia cortical dum feijão, ou a coriácea insipidez dalguma couve saloia."

Amanhã, de Abel Botelho (1901) #2
edição Justino Mendes de Almeida, Porto, Lelo & Irmão, 1982, pp. 7-8.

um parágrafo de Agustina Bessa Luís: A SIBILA #2

«Um dos seus prazeres consistia em analisar-se como conteúdo de todo um passado, elemento onde reviviam as cavalgadas das gerações, onde a contradança das afinidades vibrava uma vez mais, aptidões, gostos, formas que, como um recado, se transmitem, se perdem, se desencontram, surgem de novo, idênticos à versão de outrora.»

sinestesia minhota: A TORRE DA BARBELA #4

E depois há o estilo, preciso, límpido e contido do paisagista Ruben A., como neste parágrafo magistral, em que o narrador se posta ao cimo da torre triangular, pondo-nos diante dos olhos um horizonte minhoto, e cuja sinestesia passámos a compartilhar com os turistas domésticos:

«Respirava-se um ar vivaz que nos poros mais fechados entrava, descarado, à procura de infiltrações para uma dilatação alegre. Defronte, a serra de Arga desdobrava-se em matizes que deixavam ver lugarejos a deitar fumos pelas frinchas de telhados com remendos, e raro em raro, navegava um barquito de viagem a Ponte de Lima e aos Arcos, ajoujado de pipas, sacos de batatas, caixotes de sabão em barra e vassouras empalhadas.» (p. 11)

Um estilo que, neste particular, me lembra muito o de Ferreira de Castro.

edição: Círculo de Leitores, Lisboa, 1988

entre digestões e Salazar: A TORRE DA BARBEL #3

Ainda a procissão ia no adro, ou melhor: ainda era de dia -- o período mais desinteressante na velha Torre da Barbela --, os poucos visitantes "do costume" iniciavam a ascenção dos seus 32 metros, e já o narrador pusera o caseiro-guia, muito despachado nas suas "lérias de almanaque", em "ascrições latinas", pedras de "prumitiba" ou mortes por "adigestão" para impressionar os excursionistas, que rapidamente se desvanecerão, sem outro interesse na narrativa que não fosse o de pontuar a vetustez e decorrente interesse patrimonial do edifício -- como seria de esperar dum grupo de de excursionistas.
O registo é cómico desde o início: a fila de visitantes a caminho do alto é comparada com uma espécie de lombriga subindo por um enorme tubo digestivo, o próprio monumento:
«A bicha dentro do esófago da Torre contava para si os martírios passados naquela ascensão; uns davam  as has de alívio, outros comparavam com a escadaria do Bom Jesus do Monte, com a Torre dos Clérigos e ainda recordavam a subida ao Santuário de Lamego.» (p.8)
Ao tom farsante, imagens do remanso bucólico do país: o rio Lima, «calão e adormecido», que «nem sabia de onde vinha»; «saudades da Índia à deriva num mar vegetal», Natureza «a queixar-se do reumático», quotidiano vegetativo.
"O dono actual, burgesso" deste "monumento nacional" deixava-o ao abandono: «E talvez fosse melhor assim. Não se industrializava nem se ofendia o sagrado das pedras, testemunhas de feitos extraordinários.» (p.10) O dono da Torre que evoca o Portugal da época -- vasta paisagem para lá de Lisboa -- e o dono dele, Salazar.

edição: Lisboa, Círculo de Leitores, 1988

uma epígrafe de Sá de Miranda n'A TORRE DE BARBELA, de Ruben A.

«Logo os meus olhos ergui / à casa antiga e à Torre / e disse comigo assi: / 'Se Deus não val aqui, / perigoso imigo corre!» -- n'A Torre da Barbela, de Ruben A. (1964)

terça-feira, 5 de novembro de 2013

um parágrafo de Júlio Dantas


Subitamente, na calada da noite, o sino do Mosteiro de Santa Cruz tangeu a capítulo. Um vozeiro de povo e um tropear de bestas alarmou o velho burgo. O rei levantou-se, de repelão, bateu no tijolo as balugas de ferro, debruçou-se do janelão enorme que um mainel de pedra geminava, e olhou. Lá baixo, na congosta, galgando em direitura, ao mosteiro, palpitava um clarão de cerofalas acesas, ferrolhavam no lajedo canelos de azêmolas, um bezoar confuso de vozes subia até à alcáçova.


Pátria Portuguesa (1914) / 14 Novelas Históricas Portuguesas -- De D. Afonso Henriques à Batalha de Aljubarrota, Lisboa, Estúdios Cor, 1965